Os milhões
Restavam-lhe alguns cobres
a tilintarem no fundo do bolso, cobres que não davam nem sequer para o tabaco. Encaminhou-se
para onde
pudesse preencher um
boletim do euro-milhões, marcou as
cruzinhas correspondentes ao dinheiro de que
dispunha, deixando esse quase nada no vendedor de sonhos;
arrecadou o documento com tal cuidado, tamanho
desvelo, que
dir-se-ia ter sido antecipadamente contemplado.
Os problemas
que o atormentavam esvaíram-se num ápice, dando lugar à
tranquilidade em que
os bons sonhos
são bálsamo
e mestres. Que
estranho!…
Assim, qual toque de magia, mais eficaz do que consultar o melhor
dos psicanalistas, um
minúsculo papelito deu-lhe tranquilidade
e quase se sentiu feliz.
Como era
possível que
um pequeno
pedaço de papel exercesse
tamanho bem-estar?
Balzac definiu a lotaria como sendo “o ópio
da miséria”; Baudelaire referiu-se-lhe em “Os paraísos
artificiais”. E ambos,
o que não
é de estranhar, definiram-na exemplarmente.
Quanto mais se nos
apresenta difícil o presente,
ou incerto o futuro
o recurso ao “ópio”
ou aos “paraísos
artificiais” sobe vertiginosamente;
é a fuga para
não se sabe onde,
nem interessa tão-pouco. É a evasão ao real que esmaga e para a qual não se encontra qualquer
saída ao alcance
dos meios de que
se dispõe nem da força
que esmorece.
Em casa, não diria
que não
tinha conseguido emprego
e muito menos
que havia gasto
todo o pouco
dinheiro que lhe restava. Não,
não diria nada
à mulher porque
ela sonha
com os pés
assentes na terra
e estava certo que
não o acompanharia nos
seus sonhos
desfasados da vida; durante
esses quatro
dias guardaria o segredo
e depois… só
depois lhe
faria a surpresa.
Uma neblina fria molhava-lhe o rosto
e, ao contrário do habitual,
agradava-lhe esse desconforto.
A realidade que
o esmagava era muito
mais desconfortável
e as cruzinhas com que
assinalou os algarismos escolhidos, já nem se
lembrava quais, aplanaram os escolhos deixando-o a planar.
“Já que
não consegui o emprego,
deixem-me, pelo menos,
sonhar, concedam-me estas férias
de quatro dias
e neste intervalo não
necessitarei de antidepressivos que me têm
mantido aparentemente normal.” Assim
ia pensando.
O jogo
da roleta, com
o ouro à vista,
é um relâmpago
que não
dá tempo para
sonhar, ao passo
que a lotaria oferece uma duração de cinco
dias a esse
magnifico clarão. Qual
é, atualmente, a potência
social que
pode, por alguns
euros, adormecer-vos face à realidade, mergulhando-vos
nessa esperança mágica?
Semana após semana, o ciclo refaz-se, os sonhos
radicam-se, há que os alimentar
com algumas cruzes
rabiscadas sem sentido;
droga indispensável
ao equilíbrio dos onírico-dependentes.
Entretanto, a realidade impõe-se, pesadelo
omnipresente, plena de jogos obscuros
e cartas marcadas pelos
proprietários desta sociedade
casino.
Os sonhos
vendem-se bem
mas a realidade é acutilante
1 comentário:
A realidade ê de tal maneira acutilante,que me pergunto,se o direito ao sonho por pouco tempo que seja,nao darâ uma certa tranquilidade,mesmo que ilusôria.O jogo ,ê sempre hipotêtico.Penso que o jogador,no fundo,no fundo,sabe que nao lhe sai nada.Estou a falar do caso que acabei de ler.O jogador compulsivo,jâ entra noutros domînios.
Abraco
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