TRÊS BÊBADOS
E UM DISCURSO
“As gripes de verão são como certas maiorias absolutas, chegam não
se sabe como, sofremo-las e vimo-nos aflitos para nos livrarmos delas”
(Pensamento entre
dois espirros.)
Na
Azinhaga do Asno nem
todos são
burros, mas
bêbados há pelo
menos três.
Não têm mau
vinho, e a seu
gosto escolhem os diferentes
modos de se emborracharem, como é de rigor a uma democracia que
se preze. Cada qual
gosta do que
gosta, ninguém
tem nada com
isso.
À mesa da tasca a
conversa é de lamentações;
mesmo os que
bebem para esquecer não conseguem olvidar os problemas que este governo lhes causa.
O mais bem enfarpelado queixa-se que
o gelo no whisky lhe
causava soluços. O bebedor de cerveja confessa que
passou a enfrascar-se com “minis”, porque o médico
o aconselhou a beber menos.
O terceiro tem um
grande desgosto
em não
saber a razão
por que
gosta só
do tinto.
Os
três comparsas
olharam de soslaio para
a televisão e assistiram à entrada em cena de um senhor muito bem penteado, e
escanhoado a preceito, de olhos
esbugalhados como nos
anúncios às lentes
de contato, tendo atrás de si duas bandeiras nacionais e um pano azul com estrelinhas.
O
bebedor de “minis” pensou que iam tocar o hino nacional e tentou pôr-se de pé
sem resultado;
o que só
bebia tinto que já
via tudo do avesso disse que
era um
reclame ao produto
que cola os sábios ao teto;
o do whisky achava que era publicidade
sim, mas
à brilhantina ou
às lâminas e pincéis para
a barba.
A câmara fez um grande plano do
ator que deu
as boas noites como
qualquer um
dos nossos vizinhos
com quem
não estivéssemos zangados, gentileza a que
todos responderam educadamente, e
cumpridas estas primeiras e primárias formalidades
o homem foi direto
ao que ali
o trouxera:
- “Sou
um ministro
honesto…”
Não
conseguiram ouvir mais
nada. A Dona
Arminda armou um chinfrim
com o peixeiro,
um escarcéu
de tal ordem
que o esganiço da sua
voz enchia a Azinhaga:
- “Aldrabão! Vigarista!
Vai levar mas
é...”
O patrão da tasca,
com o cabo
da vassoura aumentou o som
do televisor, ouviu-se ainda “a minha
vida foi sempre
pautada…” mas o penteadinho não conseguia abafar a Dona Arminda.
- “Apregoavas
vivinha-da-costa e só vendes peixe podre. Levas com uma
solha no focinho que
nunca mais
apareces aqui na Azinhaga”.
O carteiro, acabado
de chegar, tranquilizou-os dizendo-lhes que logo a seguir, e em vários telejornais
os analistas iriam comentar
tudo, e ensinar-nos como
deveríamos compreender o que
o homem estava dizendo.
Que
não estivéssemos preocupados; que qualquer imbecil iria entender; que os senhores
da televisão sabiam que
havia muita gente
bêbada e parva
e por isso
gastavam muito dinheiro
para mandar explicar tudo muito bem explicadinho, não houvesse alguém
que ousasse pensar.
Mais tranquilos os três amigos foram dissertando sobre
o pouco que
ouviram. No entender do “Minis” todos
os ministros, candidatos
a primeiros-ministros e primeiros-ministros, tal
como os primeiros-sargentos deviam usar farda, boné e galões para se distinguir dos segundos e terceiros
ministros.
Tinham
ouvido o candidato
a primeiro-ministro pedir
a maioria absoluta.
O senhor do whisky estava apreensivo.
Encomendou uma “água das pedras” e disse aos seus
companheiros que
tudo o que
é absoluto é preocupante, principalmente quando
se trata de poder
absoluto ou
de maiorias absolutas, onde se constrói o absolutismo
em que
os governados deixam de ser ouvidos.
Os outros não
compreenderam lá muito
bem, mas solidários preocuparam-se também.
Ainda ouviram o
penteadinho na televisão dizer
que se demitia, ao mesmo
tempo que
a dona Arminda mandava o peixeiro à merda.
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