A RAZÃO
DA NÃO RAZÃO
Ver as cousas até ao fundo…
E se as cousas não tiverem fundo?
Álvaro de Campos
Entrar de carro em Lisboa quanto mais
cedo melhor; verifico o nível de combustível e, não vá o diabo tecê-las, o
melhor seria abastecer-me na primeira bomba de gasolina, antes de entrar na
auto-estrada.
Se bem o pensei assim o fiz. São sete
horas menos cinco minutos, o funcionário lá estava, sentado à entrada do seu
cubículo, saudei-o com um sonoro “bons-dias”, pedindo-lhe de seguida para ser
atendido.
Resposta seca: faltam cinco minutos para
abrir!
Como quem pede desculpa, ousei dizer-lhe
que estava com alguma pressa.
Sem perda de tempo,
retorquiu incisivo:
- com
ou sem
pressa na farmácia
também teria que
esperar!
- Não ficava mal alguma amabilidade…
Arrisquei.
- Para comigo, nem a vida tem sido
amável, murmurou.
Para preencher o silêncio que se seguiu, permiti-me recordar
que, ainda
não havia muito
tempo, um
dos seus colegas
se enganara cobrando-me menos trinta euros e, como
disso me apercebera, apreçara-me em voltar e repor
a quantia que
faltava.
O homem
olhou-me de frente e disparou:
- Não
fez mais que
a sua obrigação!
Mais uma vez tem razão,
desculpei-me humildemente.
Lembrei-lhe que um cliente… Não me
deixou acabar antevendo onde é que eu queria chegar.
- O patrão tanto me agradece assim como
de outra maneira. Sabe qual é o meu ordenado?
A rádio emitiu o sinal das sete; o
sujeito levanta-se e atende-me como se eu tivesse acabado de chegar;
entrego-lhe o cartão do Multibanco para pagamento e então dirigindo-se-me numa
postura de menosprezo, bolçou:
- Não sabe que com este cartão já podia
estar servido e a caminho?
Apreciei a argumentação ágil e precisa a
todas as minhas investidas, replicou sempre com objectividade bem fundamentada
e, no entanto, face à civilidade pela qual reciprocamente nos devemos reger, as
suas razões não eram razoáveis.
Somos apanhados com alguma frequência
nestas encruzilhadas em que a razão e a não razão se confrontam deixando-nos vazios
de argumentação.
O próprio uso dos vocábulos não deverá
ser deixado entregue aos impulsos do nosso inconsciente; por exemplo: ainda há
bem pouco tempo, também numa estação de abastecimento de combustíveis, ao
encher o depósito, o mecanismo de segurança não funcionou derramando o “precioso
líquido” com o prejuízo e os perigos daí inerentes.
Reclamei junto do funcionário,
respondendo-me este, com a maior dos à-vontades, que não tinha sido ele a
encher o depósito e, como tal, nada tinha a ver com o que acontecera.
- Mas o sistema está avariado e a bomba
de gasolina não é minha; respondi.
- Então se não é sua porque é que me
está a chatear?!
Também para casos destes não sou bom de
assoar, recorri, no entanto, a uma réstia de sangue-frio para raciocinar e
concluir que não estava à altura de continuar uma discussão a esse nível.
Paguei, saí, tomei nota da anedota e sorri.
Cada vez mais, devemos exercitar a nossa
capacidade de, face ao absurdo, encontrar o seu lado cómico, caso contrário
colocamos em risco a nossa sanidade mental.
Privatizam a EDP, a ANA
e outras grandes empresas,
e nós dizendo que
não pode ser,
que é património nosso;
e a resposta vem firme:
Era!
Não encontro o lado cómico destesexemplos; traz o esturro do trágico e o enleio do absurdo.
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