segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Ano novo?



Ano novo?

«Há duas maneiras de matar: uma que se designa abertamente com o verbo matar; outra, aquela que fica subentendida habitualmente sob este eufemismo delicado: “tornar a vida impossível”. É a modalidade de assassinato lento e obscuro, que requer uma multidão de cúmplices invisíveis. É um auto-de-fé sem chamas, perpetrado por uma inquisição difusa.»
Eugène D’Ors, La vie de Goya

Um outro ano será de certeza, mas porque trará por arrasto os vícios e malefícios do ano que se diz findar; novo, novo de certeza, não será.

O dito “Ano Novo” transportará no seu bojo tudo o que herdar de bom ou mau, quando à nascença o seu progenitor se finar.

E não poderia ser de outro modo. Como é que na sequência deste ano infecto, repleto de pústulas, poderá surgir um outro escorreito, saudável, no seio do qual nos dê gosto ou seja desejável viver?

Em crescendo, às dezenas de milhar, os que sobrevivem da força de trabalho expressam na rua angústia e revolta; estranho seria que assim que mudasse o calendário, saltitantes – ano novo, vida nova – esquecendo os atentados de que foram vítimas durante o ano que suportaram, rasgassem a última página do calendário sorridentes, felizes.

Vive-se o desconforto das manhãs húmidas e de viscosidade que se nos cola à pele, e nesse mal-estar paira um resmungar colectivo que convida ao conflito.

O descontentamento é tecido com agulhas de sofrimento, processo lento, e no entanto seguro, que atravessa horizontalmente dias, meses, anos, sem ter em conta o almanaque.

O novo ano anuncia-se, abrem-se as janelas para o ver chegar, mas perde-se o jeito de o saudar; não surge triunfal como se poderia esperar, antes sonso, desajeitado, sem o rosto da esperança ou o porte viril da confiança.

A noite está escura e o som dos camiões do lixo não são bom presságio. Ao longe ouvem-se os morteiros e a alegria manifesta-se fugaz no colorido e na luz do fogo-de-vista. Volta a escuridão sem artifícios, é a realidade que se impõe, o negrume da tristeza que acompanha a insegurança.

Adivinha-se a madrugada impenetrável. O novo dia chega-nos denso, incerto. Vultos disformes deslizam fugazes e hesitantes no caminhar.

Compete-nos iluminar o futuro de bem-estar que nos tem sido extorquido e dar-lhe sentido lutando contra a quadrilha de malfeitores que se apoderaram dos nossos bens e põem diariamente em risco as nossas vidas.

1 comentário:

Pata Negra disse...

Que prosa, escritor! Que prosa!...
Proso tb eu, liberto do calendário gregoriano, que do ano que aí vem pouco advinho mas que pelo ano que passámos alguma desvio terá de acontecer. Esperamos que ele aconteça, sabemos que torcer pode doer mais que aguentar, acreditamos que as flores exigem tronco e ramos mas, que porra, isto não pode continuar assim!
Bons abraços, novos anos, claros olhos te vejam sempre assim! Como os meus: imodesto abraço, claro, à luz!