(Le Monde
Diplomatique – maio 2011)
Comédia séria sobre a crise financeira
Por FRÉDÉRIC LORDON
*
* Economista. Este texto é extraído do seu livro D’un retournement l’autre. Comédie sérieuse
sur la crise financière, en quatre actes, et en alexandrins, Seuil, Paris, nas
livrarias a 5 de Maio de 2011.
A
crise financeira em versos alexandrinos? Mas que ideia, deuses meus… Em
primeiro lugar, talvez, porque as misturas produzem efeitos por si mesmas, e
porque a mistura entre a língua do teatro clássico, com todo o seu universo de
refinamento à Luís XIV, e a absoluta vulgaridade do capitalismo contemporâneo
passa um pouco por aí.
Sabe-se
que o alexandrino é adequado à pompa de um Bossuet ou à tragédia de um Racine,
mas também o sabemos capaz de fazer rir, talvez mais ainda se for um pouco
adulterado –, e essa vantagem não é pequena quando, ainda por cima, estamos
numa período em que tudo dá vontade de chorar. Aplicar uma forma, conhecida
como capaz de acompanhar os grandes sentimentos, às mais miseráveis manobras da
finança à rédea solta é, assim, talvez uma das maneiras de não ceder
completamente ao desespero quando, precisamente, vemos estas manobras
triunfarem na realidade.
Os
amigos do mundo tal como ele está regozijam-se por ver no exercício possível do
escárnio o sinal incontestável das nossas maravilhas liberdades e da nossa
vitalidade «democráticas». Mas é exactamente o inverso! Passado um certo grau
de generalização, o escárnio devia ser sobretudo tomado como um sintoma inquietante,
o de um estádio de deterioração democrática em que, sendo todos os protestos
ignorados, tendo todos os mediadores deixado de mediar, tendo todos os
«representantes» traído a representação, já não resta mais nada à massa dos
governados que não seja a opção de se rir; uma aposta desesperada, daqueles
para quem o escárnio, a única coisa que lhe resta, é a arma de último recurso,
antes talvez de se virarem brutalmente e tombarem no chão.
Aqui,
o verso alexandrino empresta toda a sua ambivalência: escarnece à vontade e faz
dos enfatuados ridículos, mas pode também procurar uma nuvem escura e anunciar
tempestades. Não são exactamente os da tragédia se a entendermos como o
confronto de dois bons direitos irreconciliáveis ou de duas exigências igualmente
legítimas. Por uma vez podemos economizar em complexidade: o horizonte do
capitalismo financeiro não é trágico. É simplesmente odioso.
ACTO III
Cena 2
O
gabinete do presidente da República, os banqueiros – acabados de escapar do
desastre pela intervenção do Estado. E, no meio deles, um conselheiro um pouco
especial, voz improvável da crítica ao sistema no coração do sistema.
O BANQUEIRO
Presidente, Senhoria, do país a douta
imagem,
Permiti que vos prestemos a nossa
grata homenagem.
Primeiro à vossa acção, decidida,
incomparável,
Que conseguiu afastar tudo o que é
inominável.
Mas depois também à vossa enorme
sabedoria,
Que nos dá grande prazer e muita,
muita alegria
Por aceitardes ouvir estes amigos
antigos,
Que de vós vêm afastar maus conselhos
e perigos.
O QUARTO BANQUEIRO
Nós sabemos bem qual é do povo a
opinião,
Tudo aquilo que prepara, toda a
grande agitação.
Ouvimos gente na rua, incendiada e a
gritar,
Que quer punir nossos pares e
fazer-nos degolar.
O povo não sabe nada, está entregue
aos demagogos,
Exagero e acção cega são os seus
violentos jogos.
Nada mais que paixão bruta e impulsos
desvairados,
Muitos focos de tensão e furores
descontrolados.
O TERCEIRO BANQUEIRO
Mas o pior, Excelência, é o bando oportunista,
Sem vergonha e excitando toda a fibra
populista.
Eles infestam os espíritos com ideias
de desnorte
E já só nos querem ver numa câmara de
morte.
Até mesmo os moderados são bastante
perigosos,
É claro que nos parecem bem menos
perniciosos,
Não tendo eles um projecto para nos
erradicar,
Não deixam, apesar disso, de nos
querer regular…
O BANQUEIRO
Não é preciso intervir, nosso caro Presidente,
Nada disto passará de um mero
inconveniente.
Mas o que é que querem eles? Mais
rigor e mais lisura?
Nem pensar, tudo não passa de uma
enorme e vã loucura.
O mercado, desta crise, deve sair com
mais força,
Embora possa sofrer, às vezes alguma
mossa.
Mas se toda a natureza tem ciclos,
como sabeis,
Não há nenhuma razão para fazer novas
leis.
Quem quereria impedir o regresso das
estações,
Travar todos os planetas nas suas
revoluções?
Aos mercados nós devemos este tipo de
saber,
A estas flutuações é preciso
aquiescer.
Regular é contrariar toda a ordem
natural,
Que nos traz sabedoria, sempre
providencial.
São perturbantes, é certo, mas não há
que as temer:
Devem ser aceites sempre e temos de
as sofrer.
Afinal é pouca coisa, ouso dizer
quase nada
Face a tanta maravilha, à riqueza tão
falada,
Que o mercado nos oferece, sem
qualquer preço cobrar.
É isso, Vossa Alteza, que temos de
preservar.
O SEGUNDO BANQUEIRO
Claro, Vossa Majestade, que uma crise
andou no ar,
Mas o que é mais importante é não
desmoralizar.
Foi apenas um incidente, que causou
algum furor,
Mas o vento já voltou a estar a nosso
favor!
E não será isso a prova, mais
evidente e suprema
De que não há qualquer razão para
mudar este sistema?
O TERCEIRO BANQUEIRO
E veja, senhor Presidente, com a sua
sabedoria
Tudo aquilo que a finança oferece à
economia:
Dirigimos bem o crédito, alocamos
capital,
Nós fazemos circular o seu fluido
mais vital.
Tudo aquilo que inventamos, com amor
e com audácia
Pretende sempre trazer mais rigor e
eficácia.
Quando agimos e fazemos, o que está
nas nossas mãos,
Nós só pensamos no bem dos nossos
concidadãos.
Mas para seu benefício e maior
satisfação
Ninguém pode interferir na nossa
nobre missão.
Aqui estamos a assumi-la, com um
grande entusiasmo –
A regulação, essa sim, é que conduz
ao marasmo.
O NOVO SEGUNDO CONSELHEIRO
ao terceiro
conselheiro
A missão, o entusiasmo, a boa rota em
que estamos:
Não são mesmo comoventes, estes bons
samaritanos?
Ah mas que grande espectáculo, mas
que espantosos actores,
Pareciam ser canalhas, afinal são
benfeitores…
Quanto maior for a crise, mais alto
eles podem rir,
Para quê terem cuidado se há sempre
alguém para ouvir
Tão grandes enormidades e um tão
grande destempero?
Um momento de recuo, confesso, com
desespero,
Poderia mesmo levar-me a uma grande
admiração:
Mas o seu atrevimento, audácia e
desinibição
São a marca de uma época, em que
vemos todos já
Que eles se sentem capazes de gozar
com tudo o que há:
Com a dura realidade, com as maiores
evidências,
Com a mais pura boa fé e, claro, com
a decência.
São cínicos ou cretinos? É esta a
grande questão
E uma resposta certeira e rápida
surge então
Dizendo que esta gente, não pára
perante nada:
Quanto mais ousa e mais age, mais ao
capital agrada.
O SEGUNDO BANQUEIRO
Alteza, vós sabeis bem que amamos a
boa gente
E que, pela democracia, nossa luta é
permanente:
Enfrentaremos, de pé, as nossas responsabilidades,
Mas em vez de apoiarmos tão imprudentes
reformas,
Nós achamos que o melhor, é mesmo
apelar às normas.
Não às que vemos na lei, mas àquelas
bem mais nobres,
Nas quais nós sempre pensamos, quando
ajudamos os pobres.
Penso muito na moral, que sagrada
deve ser,
Que não liga nada à lei para melhor
fortalecer
A consciência que é fonte, de
milagres espantosos
Donde emanam sem cessar muitos feitos
gloriosos.
Aqui todos reunidos, neste dia tão
solene
Vamos construir para a ética, um bom
modelo perene.
As leis, as regulações, são todas
muito opressivas.
As da alma, essas sim, são muito mais
decisivas.
Toda a lei é em si mesma, odiosa,
coisa má,
Mas a nossa consciência é mesmo o
melhor que há.
O mercado, bem sabemos, não quer a
regulação
E apela, pelo contrário, a uma
moralização.
Este é o nosso compromisso, é esta a
nossa missão.
O NOVO SEGUNDO CONSELHEIRO
ao terceiro
conselheiro
Que historiador falará do sempre
eterno retorno,
Da banca que volta já ao seu tão
recto percurso,
Da recorrência das crises, da
constância dos discursos?
O sistema é mui perfeito e não há que
lhe tocar,
O mal vem é dos perversos, que nos
querem acusar,
Vamos já mas é calá-los e
lembrar-lhes a moral,
Defender nossos princípios e
acusá-los do mal.
E eis-nos já armados, para uma festa
que promete.
Não está lembrado da bolha, que
atingiu a Internet?
Suas promessas de então e as de hoje,
aos milhões,
Só podiam mesmo vir daqueles grandes
aldrabões.
E o que se repete não são, tal como
eles dizem, as crises:
São as palavras que gritam, nos mais
diversos matizes.
(designando o
presidente)
Eis aqui uma matéria onde ele é mesmo
excelente:
Palavras firmes, ousadas, e frases
bem contundentes;
Nada lhe agrada mais que a sua pose
guerreira
Que faz parecer verdade a mentira
mais grosseira.
Veja como ele os vai fazer parar…
O PRESIDENTE
Eu decidi, meus senhores, pôr já um
ponto final
Nas más práticas, no excesso, no
pensamento soez.
Com palavras vigorosas, e muito
sábias talvez
Enuncio os princípios duma doutrina
notável:
E do alto da virtude, quero ficar
memorável.
As coisas que eu disser, todos as vão
aceitar
Porque eu as proferi e eu as fiz
editar.
Tendo resolvido a crise na situação
de emergência
Eu previno para o futuro, toda e
qualquer turbulência,
Reafirmando que o nosso bom e velho
capitalismo
É como o brilho do sol, o do nosso
heliotropismo:
Digo que das nossas órbitas, nunca
devemos saltar
Nem deformar a elipse, nem o zénite
mudar –
(encantado)
Vejam como estas palavras, tão
excelsos milagres meus,
São uma inspiração divina, que me
caiu lá dos céus!
Eu tenho os meus Pentecostes e uma
palavra de rei,
Eu posso profetizar, ditar toda e
qualquer lei.
Aqui digo, meus senhores, que só a
virtude tem sentido
E que o capital é bom, quando por ela
é movido.
A sua ordem espontânea, e tão
perfeita também,
É mesmo a própria moral que nos chega
do Além.
Senhores conselheiros cheguem, aqui
um pouco mais à frente,
Quero fazer um discurso que
impressione toda a gente.
Escolham um local que seja, propício
à ovação,
Poderá ser lá no Sul, e porque não em
Olhão?
(Tradução de Agostinho Santos Silva)
1 comentário:
Personagens fielmente retratadas.Com todo o cinismo que as caracteriza.Abraço
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