domingo, 9 de setembro de 2018

Uma flor é sempre linda mesmo se desabrocha no lixo



me apertado. Quase esmagado. Aquela massa compacta de gente estava feliz. Invadiam todos os lugares da antiga FIL. Eram milhões de conversas, milhares de sorrisos, infinitos abraços. E no domingo à tarde o comício teve de vir para a rua. A grande nave era pequena de mais.
Era a primeira edição da Festa do Avante!. Estávamos em 1976. Nunca se tinha visto nada igual. Foi a primeira vez que vi um palco gigante. Que vi músicos a sério. Sentia-me bem. A palavra que mais se ouvia era “camarada”. A segunda, “liberdade”. Tudo era novidade. Corredores de política. Corredores de comida. Corredores de música. Corredores de arte. Mas o espaço que ficou gravado na minha memória, porque passei lá imenso tempo, era o Espaço Internacional. Milhares de pessoas queriam ver o pavilhão da União Soviética, da RDA ou da Checoslováquia. Ali estavam os países socialistas e os partidos irmãos. Ali estava o imaginário.
Os países socialistas ofereciam livros, cartazes, harmónicas, chapéus, palas para o sol, emblemas, balões, bandeiras e até relógios de bolso made in DDR. Algumas coisas consegui no meio de tantos braços esticados. Não me lembro o quê. Excepto o famoso relógio de bolso. Uma proeza. Uma prova de que a persistência dá frutos. Durante anos, o relógio de horas certas embelezou a minha mesa-de-cabeceira. Todos os dias lhe dava corda num ritual quase mecânico. Tinha orgulho naquele pequeno relógio de algibeira conseguido a pulso. Com o tempo o relógio perdeu importância. Parou um dia nas seis e seis. Foi depositado numa gaveta.
Ao jantar, ainda antes de o relógio ser guardado na gaveta, disse ao meu pai e à minha mãe que queria ir trabalhar. Não sei que idade tinha. Ficaram espantados. Tinha idade ainda para estudar. Era novo, muito novo. Disse-lhes que queria ajudar a construir a Festa. Ir trabalhar para o Avante!. De mochila às costas, apanhei o comboio e fui. Amigos iam para as vindimas ou para a paragem da Celulose. Ganhavam dinheiro. Eu optei por ir para a Festa. Voluntário. Gastar dinheiro aos meus pais. Foi um mês alucinante. Conheci tanta gente. Fiz tanta coisa. E depois naquele fim de tarde da sexta-feira mágica, os portões abriram-se e a maré humana invadiu tudo o que tínhamos construído. Ficou a sensação do dever cumprido. A sensação de que a persistência dá frutos. Antes de sair de casa, pedi ao meu pai para todos os dias dar corda ao relógio!
Foram anos seguidos a cumprir o meu voluntariado. A Festa ficou-me no sangue. Cresci a ver a Festa crescer. Preguei milhares de pregos. Coloquei tubos. Pintei murais. Reguei a relva. Recolhi o lixo. Desenhei letras. Serrei madeira. Dancei. Abracei. Beijei. Ali, naqueles metros quadrados a perder de vista, sentíamo-nos bem. Sentíamos paz. Dávamos sentido à vida. Éramos solidários. Éramos amigos. Ali, era outro mundo. Um mundo sonhado e desejado. Um mundo difícil de conseguir. Um mundo possível. Humanista. Era o electricista, o canalizador, o arquitecto, a costureira, o cozinheiro, o pintor, o artista, o técnico de som, o jardineiro, o médico, a enfermeira, o bombeiro, o reformado, o estudante... eram tantos e sempre tão poucos. Era tão gigante aquela tarefa colectiva. Ambiciosa. Construir uma cidade em três meses para durar três dias. A Festa começava com um esqueleto de tubos ao alto. Ia sendo construída, levantada do chão. Gostava de adivinhar as formas. Crescia todos os dias. E depois das paredes ao alto, artistas plásticos davam vida ao contraplacado castanho-claro. A Festa ganhava cor e mensagem. E quando as centenas de mastros se engalanavam com bandeiras de várias cores, a sexta-feira mágica aproximava-se. Eram três dias de sã loucura. Uma maravilha.
Deixei de ajudar a construir a Festa no ano em que coloquei o relógio na gaveta. O rumo da vida assim o quis. Continuo a admirar o empenho e a dedicação que homens e mulheres entregam naquela quinta ajoelhada perante o Tejo. Lugar de liberdade. Lugar de cultura e saber. Lugar fraterno. O mundo necessita de muitos lugares assim. Nunca faltei à chamada. Nunca faltei a uma Festa. São já 42 edições. Existem amigos que só se abraçam uma vez no ano. É na Festa. Outros já partiram e ficaram no coração. A Festa do Avante! é um caldo de emoções. Ao fim do dia, a brisa combate o calor. Gosto de me sentar na relva e olhar para aquela cidade que cada vez está maior. Penso como é possível. De onde continua a vir tanta força para planear, organizar e dar vida a um dos maiores acontecimentos políticos da Europa. Não encontro uma resposta mas muitas respostas.
 
A propósito desta crónica tirei o relógio da gaveta. Continuava nas seis horas e seis minutos. Dei corda e os ponteiros começaram no seu ritual como se o tempo não tivesse andado. Talvez o relógio made in DDR ainda não saiba que o Muro de Berlim caiu. Que perdeu a nacionalidade. Que agora é alemão unificado. Mas os ponteiros teimam em trabalhar. Numa luta por um tempo novo. O velho relógio alemão ainda não morreu.

Jornal o Público 9-9-2018

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