domingo, 5 de janeiro de 2020

Reler um bom livro

O último livro de Ana Margarida de Carvalho, “O Gesto Que Fazemos para Proteger a Cabeça” tal como os outros dois romances, não se lê uma só vez, na releitura encontramos sempre algo que nos escapou ou surge com maior nitidez. Escrita absorvente, personagens e situações que nos prendem e uma imaginação sem limites.

«… oh Deus, eu poderei estar encerrado numa casca de noz e considerar-me o rei do espaço infinito, não fossem os sonhos que tenho,
   já vinha aprendendo alguns trechos precariamente traduzidos pelo amigo,
   e não, sossegava-o, Maria Angelina matava por gosto,
   o gosto férreo do sangue,
   o arrufo acabaria por passar, mais hora menos hora, mais dia menos dia, ela chegaria àquele braço enluvado já com cãibras, que muitas vezes Simão ajudava a suster, portanto ele os dois ali, insones e aturdidos, ao relento, matar, só mesmo o tempo,
   era deixar que passe, homem, como uma chuvada,
   se não és capaz de mudar alguma coisa, espera que ela mude,
   mas não foi isso que fizeste, estrangeiro, não te reconheço nessa demissão, que da tua ilha longínqua do norte, onde poderias esperar a mudança, quem sabe, um dia, sem colocares a cabeça na forca, o peito aberto ao fuzilamento e a veia a rebentar num grito, vieste aportar ali a Espanha, embrenhar-te até ao pescoço, viver o pavor dos bombardeamentos, suportar a dureza da miséria, derramar sangue, o teu e o dos outros, dinamitar carris, assaltar quartéis encarniçados, incendiar igrejas, tu, filho e neto de falcoeiros ingleses, com nenhum treino militar, e ainda menos equipamento, pegando nas armas dos que caíam, sem conheceres a língua nem os caminhos, meter-te em assuntos que não te diziam respeito, enganas-te, alentejano, diziam respeito à minha consciência, e esses apelos têm carácter de urgência e não admitem olhares para trás, Espanha era o último sítio do mundo onde um homem livre poderia lutar, a luta de um povo nunca é a luta de um só povo, e se aqui, neste ermo de moleza, em que as gentes não lutam porque lhes faltam las ganas, a morte é desvalor, lá, morrer era valor, morrer por algo que vale a pena é um acto de vida e de liberdade, …»
              (pág. 59/60)

1 comentário:

Olinda disse...

Ainda não o comprei mas está na lista.Abraço