terça-feira, 31 de março de 2020

PONTO 1 e único

PONTO 1

Gente ignara e insensível, chegou mais um momento cristalino para compreenderem, assisar se conseguirem, que a vida em sociedade só é possível com o trabalho físico e intelectual de cada um de nós. Todos!
O TRABALHO! ENTENDEM?
E o trabalho não tem preço, o trabalho é parte integrante do ser humano, é o seu sangue e sentir, o trabalho é vida pertença de cada um de nós, e a vida não se vende.

Neste momento revelador, ouvem-se as trombetas da hipocrisia a louvar os abnegados trabalhadores que recolhem o lixo, que se ocupam dos enfermos, que cultivam os alimentos ou fabricam e distribuem o necessário à nossa sobrevivência.

HIPÓCRITAS!

Quando isto acabar viram-lhes as costas e vão mandá-los à merda. Vão-lhes arengar sobre economia e dizer-lhes que temos que nos unir.

JÁ CONHECEMOS A LADAINHA!
*
 CONVERSA COM O LIXEIRO

Amigo lixeiro, mais paciência.
Você não pode fazer greve.
Não lhe falaram isto, pela voz
do seu prudente sindicato?
Não sabe que sua pá de lixo
é essencial a segurança nacional?
...
A lei o diz (decreto-lei que
nem sei se pode assim chamar-se,
em todo caso papel forte,
papel assustador). Tome cuidado,
lixeiro camarada, e pegue a pá,
me remova depressa este monturo
que ofende a minha vista e o meu olfato.

Você já pensou que descalabro,
que injustiça ao nosso status ipanêmico, lebloniano, sanconrádico, barramárico, se as calçadas da Vieira Souto e outras conspícuas vias de alto coturno continuarem repletas de pacotes, latões e sacos plásticos (estes, embora azuis), anunciando uma outra e feia festa: a da decomposição mor das coisas do nosso tempo, orgulhoso de técnica e de cleaning?

Ah, que feio, meu querido,
essa irmanar de ruas, avenidas,
becos, bulevares, vielas e betesgas e tatatá do nosso Rio tão turístico e tão compartimentado socialmente, na mesma chave de perfume intenso que Lanvin jamais assinaria!

Veja você, meu caro irrefletido:
a Rua Cata-Piolho, em Deus-me-livre,
equiparada à Atlântica Avenida
(ou esta àquela)
por idêntico cheiro e as mesmas moscas
sartrianamente varejando,
os restos tão diversos uns dos outros,
como se até nos restos não houvesse
a diferença que vai do lixo ao luxo!

Há lixo e lixo, meu lixeiro.
O lixo comercial é bem distinto
do lixo residencial, e este, complexo,
oferece os mais vários atrativos
a quem sequer tem lixo a jogar fora.
Ouço falar que tudo se resume
em você ganhar um pouco mais
de mínimos salários.
Ora essa, rapaz: já não lhe basta
ser o confiável serviçal
a que o Rio confere a alta missão
de sumir com seus podres, contribuindo
para que nossa imagem se redobre
de graças mil sob este céu de anil?

Vamos, aperte mais o cinto,
se o tiver (barbante mesmo serve)
e pense na cidade, nos seus mitos
que cumpre manter asseados e luzidos.

Não me faça mais greve, irmão-lixeiro.
Eu sei que há pouco pão e muita pá,
e nem sempre ou jamais se encontram dólares, jóias, letras de câmbio e outros milagres no aterro sanitário.

E daí? Você tem a ginga, o molejo necessários para tirar de letra um samba caprichado naqueles comerciais de televisão, e ganhar com isto o seu cachê fazendo frente ao torniquete da inflação.

Pelo que, prezadíssimo lixeiro,
estamos conversados e entendidos:
você já sabe que é essencial
à segurança nacional
e, por que não, à segurança multinacional.





1 comentário:

Olinda disse...

O "vírus e a hipocrisia" em poucas linhas mas sendo desnecessário escrever mais.Está tudo dito,com C.D.A. a concluir.Que mais falta?Abraço