Guila Flint, de Tel Aviv, e Rogério Simões 30/03/2002
Os principais trechos da entrevista.
BBC - A imprensa internacional publicou declarações atribuídas ao senhor
referindo-se aos atos do Exército israelita como actos "nazis" e
fazendo críticas bastantes duras ao governo de Israel. Qual é exatamente a sua
posição diante do conflito no Oriente Médio?
José Saramago - A declaração de que o Exército
israelita tornou-se "judeu
nazi" foi de um grande intelectual judeu (Yeshayahu Leibowitz, que morreu
em 1994), respeitado tanto do ponto de vista moral como do ponto de vista
intelectual. Não estou usando essa espécie de guarda-chuva para me proteger de
qualquer tempestade. Mas esta idéia de que algo de profundamente negativo,
destrutivo, entrou no espírito de Israel, eu não fui a primeira pessoa a dizer.
Hoje mesmo outros israelitas reconhecem isso.
BBC - Outra afirmação que o senhor teria feito sobre Israel foi comparar a
forma com que o governo israelita tem tratado os palestinos como uma espécie de
apartheid...
Saramago - Não é uma espécie de apartheid,
é rigorosamente um apartheid, e sobre isso só tem dúvidas quem não veio aqui
nunca. Se alguém quiser ser informado, supondo que as autoridades militares
permitam o acesso, a passagem nos postos de controle para chegar às aldeias e
cidades palestinas que estão completamente isoladas, onde não se pode entrar e
de onde não se pode sair sem a autorização do Exército, se se quer ver como
isto é efetivamente, há que vir aqui.
A informação que nós temos, aquela que circula internacionalmente, dá sempre
uma imagem de um lado e deixa outro praticamente omisso, ou apenas com as
imagens de palestinos disparando para o ar quando acompanham os seus mortos. Eu
não estou aqui dizendo que os israelitas são uns demónios e que os palestinos
são uns anjos, não se trata disso, anjos e demónios há de um lado e de outro.
O que se passa é que a situação política aqui, a situação de guerra que se
criou, teve como resultado a ocupação militar de praticamente todo o suposto
território palestino, o isolamento de todas as aldeias e cidades palestinas e a
impossibilidade de se circular no próprio território. Isso, se não é apartheid,
como é que havemos de chamar?
BBC - O senhor diria que, nos últimos anos, principalmente durante o governo do
primeiro-ministro Ariel Sharon, essa situação tem se agravado?
Saramago - Ela tem se agravado nos últimos
tempos. Mas, enquanto foi primeiro-ministro o sr. Barak, construíram-se mais
colónias no interior do território palestino do que aquelas construídas quando
foi primeiro-ministro o sr. Netanyahu. Quer dizer, o mesmo sr. Barak, que
supostamente se propunha a fazer a paz, instalava cada vez mais colónias no
interior dos territórios ocupados.
E aqui há um ponto que é necessário reconhecer: as colónias precisam do
Exército para se defender. Mas o Exército precisa das colónias para estar
instalado ali. E desta lógica, que é uma lógica absolutamente infernal, não se
consegue sair, porque efetivamente a paz que querem os governos de Israel não é
uma paz justa, não é uma paz que reconheça efetivamente os direitos dos
palestinos de ter um Estado, de ter uma identidade própria, uma vida que seja
sua. Os palestinos são desprezados pela população de Israel, e isso não é
demagogia, é a mais pura das verdades, e quem quiser confirmá-la que venha
aqui.
BBC - O senhor falou sobre como a comunidade internacional vê esse conflito. O
senhor não acredita que, principalmente depois de atos de extrema violência
como o atentado de ontem (quarta-feira, em que 20 israelitas foram mortos numa
explosão), fica mais difícil ainda para a comunidade palestina divulgar a sua
luta, as suas reivindicações à comunidade internacional?
Saramago - Em primeiro lugar, eu não estou
nem a justificar nem a defender este ato. Mas todos os atos de violência
praticados pelos palestinos são obstáculos à paz. Mas os atos de violência
praticados pelo Exército israelita não são obstáculos à paz... Aldeias
arrasadas, milhares de mortos, gente expulsa em 1948... Fala-se do Holocausto
judeu, mas também houve uma espécie de Holocausto palestino. Um milhão de
pessoas foram deslocadas de suas casas em 1948.
Ainda ontem estivemos em Gaza, e 150 casas foram destruídas por tanques e
escavadouras. Aqui se castiga uma ação de violência praticada por um palestino
com a destruição da casa, ou de casas ou de uma aldeia. Então os atos de
violência dos israelitas não são obstáculos à paz?
BBC - Nessa situação, que perspectivas o senhor vê para esse conflito? O senhor
tem algum otimismo em relação ao plano de paz saudita ou às atuais negociações?
Saramago - Eu não tenho nenhum otimismo,
porque efetivamente o governo de Israel não quer a paz. Quer uma paz que lhe
convenha, não uma paz justa que levasse em conta o direito do povo palestino de
ter a sua própria vida. Sou completamente cético em relação ao êxito de
qualquer plano.
E, recentemente, numa proposta dos Estados Unidos nas Nações Unidas, foi
reconhecido que o povo palestino tem direito a viver no seu próprio Estado. Mas
como se organiza esse Estado, se as colónias israelitas nos territórios
ocupados são 205, e todas elas protegidas pelo Exército e elas próprias
armadas? Como se quer falar num plano de paz que ignore essa realidade?
BBC - Devido às suas mais recentes declarações, tem havido em Israel um boicote
aos seus livros. Como o senhor vê esse tipo de reação?
Saramago - Isso é natural. Acho que, no
fundo, são reações de pessoas que não aguentam que se lhes diga a verdade.
Retirar os meus livros das livrarias é, talvez, um primeiro passo, que pode
levar a um segundo passo, que é queimá-los em praça pública. Tudo pode
acontecer.
2 comentários:
Uma entrevista que continua actual e toca os aspectos fundamentais da diferença dos direitos dos dois lados.Infelizmente ,tem sido pouco divulgada.Percebe-se porquê.Abraço
Comentário que fiz num site israelita:
"Há portanto cerca de 15 milhões de judeus no Mundo e ao longo da História têm sofrido perseguições, expulsões, pogrons, holocaustos, tudo coisas horríveis que comovem qualquer pessoa. Mas vemos agora que também há judeus maus que não respeitam os outros e porque têm uma história, que nem é cientifica, acham que tudo lhes é legítimo. Isso para os judeus não é nada bom. Já sofrem o estigma de terem morto Cristo e agora, lá porque há 2 a 3 mil anos aquelas terras tivessem sido de pessoas que identificam como tendo sido dos seu antepassados, julgam que tudo lhes é permitido sem respeito por nada nem por ninguém. Não se admirem que isso só vai criar mais ódio contra os judeus. Quando voltar a ver um filme sobre o holocausto se calhar já não vou verter lágrimas pelos judeus porque me vieram revelar uma imagem tão má para com os outros como os nazis foram para com eles".
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