LIBERDADE
DE ESCOLHA, RAZÃO E DEMAGOGIA
A liberdade de escolha constituiu o
elemento a partir do qual os debates tradicionais sobre a liberdade e a
necessidade começaram na Grécia há mais de dois mil e quinhentos anos. O
problema da liberdade de escolha reside na contradição resultante do facto de
podermos decidir contra o bem essencial, transformando a liberdade em servidão.
Isso acontece porque a liberdade pode resumir-se à escolha do conteúdo, das
normas e dos valores a partir dos quais a nossa natureza essencial, incluindo a
nossa liberdade, se expressa. A liberdade pode agir contra a liberdade,
entregando-nos à servidão. E esse é o projeto das “democracias iliberais”, ou
formais que nos está a ser proposto como paradigma da democracia. Votais! — o
resto está por conta de outrem, de nós, os vossos representantes. Este tipo de
“democracia” é o meio ideal de criação e desenvolvimento dos demagogos e da
demagogia. Dos abutres da liberdade, dos que comem o interior dos corpos, os
órgãos vitais que garantem a liberdade e deixam o esqueleto, que continuam a
designar por democracia. Não é, como o cavername de um barco não é um barco e
não navega.
O que está a ser imposto como
“democracia” é a apropriação do direito de voto por uma elite. Essa velha
perversão aproveita o que, à falta de melhor, pode ser traduzida pela palavra
alemã de Angst — medo, horror, angústia de confrontar
possibilidades e desejos com a realidade, de medo de usar a liberdade, por isso
os temerosos transferem a responsabilidade para outros que lhe surgem como
mágicos realizadores de felicidade. Esta transferência de responsabilidade pelo
uso da liberdade contradiz a natureza essencial do ser humano, de ser livre,
condu-lo à servidão, mas vendida a liberdade, já não há regresso, o demagogo
está aos comandos da nossa vida e não mais nos ouvirá.
A liberdade humana é o risco
humano. A possibilidade de ultrapassar uma qualquer situação implica a
possibilidade de não o conseguir. Mas a delegação da liberdade pode tornar-se
servidão se for atribuída a quem corrompa os princípios e os meios “democráticos”
para se apropriar dela. As campanhas eleitorais servem também e cada vez mais
como legitimações desse tipo de corruptos que surgem a par dos que cumprem
regras básicas de conquistar o voto. Isso acontece porque o modelo
“democrático” imposto pelo poder dominante para ultrapassar a universalização
do voto é o de escolher “quem” e não escolher “o quê”. A personalização
(fulanização) das campanhas e das candidaturas, o empolamento a “casos” e
revelações de intimidades servem o propósito de atrair as atenções para o quem
e não para o quê.
Os debates-espectáculo que nos são
servidos como ração democrática e integral querem que vejamos lutadores em
competição e não os empresários e os que manipulam os resultados. Os
espectáculos-debate são um falso combate encenado para dar a vitória antecipada
aos demagogos, aqueles que melhor dominam a arte de conduzir habilmente
as pessoas ao objetivo desejado, utilizando os seus conceitos de bem, mesmo
quando lhes são contrários. Aos que corrompem a essência da
democracia, de o poder ser constitucionalmente detido pelo povo, para se
apropriarem dele apelando ao menor denominador comum, propondo ações prontas a
servir para enfrentar situações e crises complexas, enquanto acusam oponentes
de moderados, de fracos e de corruptos, segundo as conveniências do momento.
O êxito dos demagogos assenta na
cobardia. Os demagogos orgulham-se da sua arte de arrastar cobardes. Os grandes
meios de manipulação elegem e legitimam a cobardia como um valor cívico. A
discussão da pré-campanha tem sido centrada no lugar a dar num futuro governo
aos demagogos que têm a arte de arrastar cobardes.
A adesão de grandes massas aos
demagogos é antiga, é uma servidão trágica que ao longo da história tem levado
a situações de brutais e irracionais ruturas, em que a humanidade se pode
reduzir à situação do indivíduo isolado à beira do abismo, insignificante e
incapaz de se aperceber da ameaça para ele próprio e da aniquilação ao seu
redor. Julgo ter sido essa a situação de muitos alemães durante o nazismo e de
ser essa a situação de muitos israelitas perante o genocídio de palestinianos.
Duas situações em que foram os cidadãos que elegeram, que votaram os que os
governaram e governam, que participaram em comícios, em ações de
esclarecimento, que ouviram ou viram debates.
O que podem fazer os que sentem a
angústia da servidão para evitar a tragédia que anteveem como inevitável
resultado da demagogia nas horríveis experiências do passado? Existe um valor
que tem sido esquecido ou muito aviltado: a coragem e não existe nenhum ser
mais corajoso do que o ser humano, porque mesmo quando em condição de servidão
não perde a liberdade se mantiver a sua dignidade.
A demagogia é um atentado à
dignidade humana e o mais reles e eficaz argumento dos demagogos é o
aproveitamento do sentimento de insegurança, que eles próprios criam e que
prometem resolver a troco da integração no seu bando. Exploram a solidão e a
fragilidade do “homem só”, do ser só, perante os predadores e rodeado de
necrófagos. Uma grande parte das criações da civilização humana pode ser
compreendida em termos de “busca de segurança”. A utilização da insegurança
como argumento encontra-se hoje no primeiro plano da panóplia de armas dos
demagogos, insegurança física, política, económica e até por falta de sentido
na vida.
Outro dos sentimentos explorados
pelos demagogos é o do desespero, entendido como o conflito entre a vontade de
se manter a si mesmo e o de se perder a si mesmo, o desejo, ou a vontade de
obter o mundo completo (a realização), e o desejo ou a vontade de se acolher à
servidão, abdicando da liberdade.
As ações a que assistimos durante uma campanha
eleitoral são a repetição do negócio da compra e venda da alma a troco de
promessas, as encenações tecnológicas nas televisões não alteram o essencial do
logro do mito de Fausto, apenas o embrulham e o disfarçam com luzes faiscantes.
O demagogo é, no fundo, uma velha máquina de picar carne que transforma em
pasta o cérebro de quem acredita que ele lhe vai fornecer uma salsicha.
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1 comentário:
Textos que vão iluminando estes tempos obscuros que pretendem alienar os cidadãos com demagogia e mentiras.Abraço
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