TÃO SUJO!...
Expressando-se correctamente, rigor no gesto e na sintaxe, o automobilista relatava o acidente, procurando justificar as razões que o determinaram.
Foi simples, afirmou: "Rolava à velocidade regulamentar, injectei água no pára-brisas, pus a funcionar as escovas, mas o vidro estava tão sujo, tão sujo, tão sujo que derrapei na lama que dele se soltou."
O polícia observou-o atentamente e entregou-lhe o "balão", o homem soprou... e nada.
"O senhor derrapou na lama saída do pára-brisas?..." Interrogou pausadamente o guarda. O sujeito, com grande aprumo confirmou: isso mesmo... o vidro estava muito, muito sujo.
O agente foi buscar outro "balão" e o resultado foi igualmente negativo.
Acompanhei o diálogo, apreciei o modo correcto e convicto do automobilista e sorri à expressão atónita do GNR.
Tudo se passava com grande compostura como mandam as boas regras de civilidade.
Vivemos num mundo de faz-de-conta, razão pela qual episódios como este não nos deveriam surpreender.
Sem nada dizer, bloqueado pela singular situação que o ultrapassava, o oficial de trânsito olhou-me com a expressão de quem pede socorro, levando-me a encetar o nosso também estranho diálogo:
- Se nos defrontamos diariamente com o absurdo, não sei por que razão não o admitimos, do mesmo modo e com o mesmo à-vontade com que lidamos com a lógica, definindo-lhe regras, dado que o absurdo é já uma constante no nosso dia-a-dia.
- Mas isso seria um paradoxo, retorquiu o polícia ainda mais confuso. Se o absurdo tivesse regras deixava de ser um contra-senso e morria a lógica.
- O senhor não reparou, respondi-lhe, que é justamente isso que está acontecendo: matar a lógica promovendo o seu contrário!
- Repare nesta recente notícia: “Merkel afirmou que Portugal está a financiar-se no mercado a mais de 7 por cento para emprestar à Irlanda a 5,8 por cento.”
“Na Região Autónoma dos Açores foram abatidos dez mil vitelos, por imposição da União Europeia e, entretanto, a “sopa dos pobres” é cada vez mais concorrida porque a miséria alastra como mancha de óleo.”
“Na área da cultura o Estado pagou 209 mil euros a um grupo de trabalho que só fez uma reunião, mas esse mesmo Estado prepara-se para nos gamar parte do 13º mês”
O guarda sentou-se no guarda-lamas do carro sem nada dizer, e o automobilista sorridente, com um aceno de assentimento, pedia-me para continuar.
- Está vendo a lógica a definhar-se, senhor guarda?
O automobilista descontrolado de alegria aplaudia, pedindo-me para continuar. Deliro com a loucura, gosto dos lunáticos e a canalhice exalta-me. Continue, continue! Implora-me o condutor.
- Em Peniche um jovem de 22 anos foi preso por ter pintado um graffito e condenado a 69 dias de prisão por não ter pago a multa de 312 euros. Entretanto os escroques que têm delapidado o erário em milhares de milhões vêem os seus crimes prescritos ou prestes a prescrever e continuam a rapina.
"As 100 famílias mais poderosas de Portugal continuam a aumentar os seus rendimentos. E o desemprego que arrasta consigo a angústia e a fome também não pára de aumentar.”
Titubeante, o polícia agarrou no "balão", soprou e concluiu que tudo estava normal.
O motorista, numa atitude de agradecimento, ofereceu-me um cartão com a seguinte máxima:
"O desemprego é um estado psicológico do trabalhador"
(Set./93) Silva Peneda).
Tão sujos! Tão asquerosamente sujos! Não é?
2 comentários:
Ótimo texto. Emendar gralhas: onde se lê:"Estado preparasse", deve-se ler:"prepara-se"; onde se lê:"continuam a aumentarem", deve-se ler:"a aumentar". Abraço. É destes textos que eu gosto.
duplamente agradecido.
Enviar um comentário