“Os medíocres, quando em rebanho, são perigosos”
José Ingenieros in “El
Hombre Mediocre”
O meu amigo Elias é um dependente em último grau de lixo televisivo, mas por contradição, também muito cauteloso. Desde há muito, tomou todas as precauções que se possam imaginar. Ou seja, não prescinde da droga, mas nunca usa a mesma seringa.
A “caixa negra” familiar, colocada na penumbra da sala, qual oratório, foi totalmente isolada para minorar a gravidade das múltiplas
contaminações que imanam de tão diabólico objecto e, porque disso está consciente, todos os perigos estão criteriosamente assinalados: uma tábua de sanita servindo de ecrã relembra o odor do conteúdo, e o papel higiénico como bibelô reforça o aviso; gradeamento à prova de bala adverte para a violência constante; chaminé de escape aos nauseabundos fumos de corrupção, e uma malga por debaixo do canto direito pronta a recolher o sangue sempre abundante nos filmes e noticiários foram também considerados indispensáveis.
Como precaução adicional colocou uma placa de vidro de muitos milímetros entre o sofá e a “caixa negra” para se resguardar das guerras com que os senhores do mundo nos brindam diariamente.
E assim protegido, embora sujeito a uma overdose assassina, sabe que irá morrer da droga mas nunca da seringa.
Pois este meu amigo decidiu viajar para um local que dizem ser paradisíaco, belas praias, gente amável e um dos pouquíssimos lugares do mundo onde se vive em segurança.
E quando pensava que me enviasse um postal ilustrado para poder desfrutar da sua felicidade, recebo uma
carta-s.o.s. que não resisto em dela vos dar parte:
«Caro Amigo,
Estas férias há tanto sonhadas converteram-se-me em pesadelo, nada me falta, faltando-me tudo: os meus queridos programas televisivos que me deixam colado ao televisor; papas enroladas em intrigas e amores esfacelados até me deixarem prostrado; ambulâncias, sirenes, silvos de balas; tudo o que possa acelerar a minha indispensável adrenalina, sem a qual não consigo dormir repousadamente.
Aqui os programas televisivos
ultrapassam tudo o que possamos imaginar, e porque não passei por uma fase de descompressão, o choque está sendo demasiado violento.
Sabes o que é ligar o televisor, e em vez de carros de polícia perseguindo bandidos, polícias bandidos perseguidos pela justiça, escândalos em universidades modernas e outros mais antigos entre financeiros e finanças, receberes de chofre aulas de música, ensinamentos para poderes ter uma vida mais sã, a divulgação de escritores e artistas nacionais
glorificando-os para elevar o sentido patriótico e te tornares mais culto e seguro? E todas estas ninharias em horário nobre.
A conclusão a que posso chegar é a de que estou num país onde a ignorância é de tal ordem que se vêem obrigados a transmitir programas culturais. Se
fossem cultos como nós que não temos mais nada para aprender, poderiam ter acesso a programas de baixo nível. Isto é tão certo como me chamar Elias! Ou seja: A cultura de um povo é inversamente proporcional ao conteúdo dos seus programas de televisão; se
transmitem cursos é porque se dirigem a ignorantes, porque não sabem, porque têm de aprender, se nos despejam telelixo é porque temos uma cultura sólida. Eu, Elias, tenho visto milhares de horas de tudo o que há de mais infecto e nem por isso sou nenhum estúpido, pelo menos nunca ninguém teve coragem de mo dizer.
Sinto-me como noutro planeta, perdi as referências, estou às portas de uma depressão. Felizmente que este é o país do mundo com mais médicos por habitante e o sistema de saúde é gratuito, e o ensino também. A universalização do ensino superior está a caminho, têm como meta ser cultos. Coitados! Gostaria de saber para que lhes serve um curso superior se depois não têm telemóvel?
Há para aí quem diga que quanto mais ignorante é o povo, melhor se conduz, por minha parte não creio que assim seja porque a minha televisão indica-me o caminho, somos uns privilegiados graças a São Gabriel e a todos os sacerdotes da nossa comunicação social de “referência”. Amém!
Não sei se peça asilo cultural ou se regresse no primeiro avião. Teu amigo em fase de tele-desentoxicação.
Elias.
Havana, 2012
Nota: Entretanto compra-me a
EP para a Festa do Avante! Obrigado.
3 comentários:
Cid,deixas-me sem palavras,gastaste-as maravilhosamente.
Um abraço,
mário
Só podia ser CUBA!!!!
VIVA CUBA E O SOCIALISMO.
Um beijo.
Coitados dos cubanos, nem têm TDT! Viva o heróico povo cubano! Vivam os portugueses que partem os ecrans de televisão para pôr canários dentro dela!
Um abraço revolucionário
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