Anorexia sintáctica
Tudo o que não
escreveste será usado contra ti.
Fernando Buen Abad Domínguez
Rebelión/Universidad de la Filosofía
Quando não escrevemos – nem documentamos – as nossas
lutas, quando não escrever é um manifesto de indolência. Quando somos tomados
pela preguiça ou pela abolia, quando chovem as desculpas e as evasivas...
alguém encherá os vazios e fará com que se torne realidade um dos nossos piores
pesadelos. O inimigo escrevendo a nossa história. Sem atenuantes.
Já há exemplos sem conta, com resultados humilhantes
e dolorosos, saídos de certas “plumas eruditas” que se deleitam “tão caladinhos”
por terem assestado o seu golpe de língua afiada nos occipitais da História. E
xeque-mate, tudo o que dissermos será extemporâneo, secundarizado, tardio e
defensivo. Pensas que o inimigo oferecerá o campo de batalha da memória para
que levantemos livremente, quando queremos, os nossos monumentos da memória?
A oligarquia treina historiadores, críticos de arte,
filósofos, sociólogos... para que propagandeiem, ao seu modo e segundo o seu
capricho, as coisas que nunca ocorreram como eles dizem, que nunca foram enunciadas
de acordo com a sua idiossincrasia e que nunca significaram tão pouco como
dizem e lhes convém. Sempre. Centenas de revoluções artísticas, científicas,
políticas e económicas... foram esmagadas pelo estilo do bem estar
subvencionado com que é asfixiada a pouca imaginação e a sintaxe simplificada
tributárias da ideologia da classe dominante. Sem sabor, sem alma, sem fogo.
Mesmo as maiores audácias da inteligência rebelde
aparecem, em muitos relatos oligarcas, reduzidas a um anedotário infestado por
grandiloquências de grande efeito ou por exageros de admiração truculenta que
se diluem no individualismo, no solipsismo e no anedotário de épocas sempre já
passadas. Com cores que variam consoante a pluma que se alugue. Pouco importa
se se trata de uma biografia, de uma invenção tecnológica, de uma mobilização
ou de um processo revolucionário... nas mãos dos nossos inimigos tudo isso é
parte “natural”, embora disfuncional, de um sistema económico e político
inamovível do qual se fala pouco e, sobretudo, sem incomodar os seus
patrocinadores. Nunca se falará de uma revolução triunfante a partir do coração
do sistema. Mas a verdade é que se trata de um artifício velho como a
humanidade para lavar cérebros, num ápice, com sabões de resignação e
impotência.
Quando outros relatam as nossas lutas apoderam-se
primeiro das substâncias semiótias mais suculentas. Manipulam o espírito,
prostituem-no e submetem-no a uma subversão de conveniências onde é
irreconhecível o sentido da luta porque ela é reduzida a um catálogo de
incidentes dissociados. Coisas de gente “idealista” ou “utópica” no melhor dos
casos. O inimigo escreve de nós e sobre nós para nos destruir. Não esperemos
misericórdia, tanto menos quanto mais se tratar de plumas que se esmeram em
torturar a verdade com subtilezas sintácticas e muitos “dados” .
Eles andam em busca das nossas histórias para
cometerem o seu crime de lesa realidade destruindo os nossos símbolos e a nossa
semântica. Ficamos desfigurados e sem alma, encarcerados nalgum género
literário da moda capaz de converter as nossas lutas em mercadoria para o entretenimento
da oligarquia. Com “final feliz”. Eles vão diariamente à caça, soltam as suas
lebres “intelectuais”, “artistas” ou “académicos” sedentos de fama e de uma
gorda conta bancária, para que voltem com uma ou várias presas históricas e as
convertam de imediato em iguarias ideológicas a la carte. Condimentadas de acordo com o seu paladar de classe e
tendo em conta as suas urgências “educativas” para domesticar as massas: para
que aprendam a não escrever a história.
Cada linha que não escrevamos, cada parágrafo e cada
página que deixemos ao abandono... serão usados contra nós. A história do
teatro popular, a história da ciência emancipadora, a história das lutas
operárias, camponesas ou universitárias. A história das revoluções de género, a
história dos avanços estéticos emancipadores, a história das histórias
revolucionárias... tudo será pulverizado na liquidificadora mental hegemónica
para que fiquemos sem história e sem referencias. É preciso ver o que dizem as
enciclopédias sobre a história do mundo, o que se ensina nas escolas, como se
escreve e se ensina a filosofia e a ciência... para entender a dimensão da
caçada a que é submetida a inteligência nas mãos dos eruditos do engano e dos
seus filtros ideológicos anestésicos.
Com mil esforços e remando sempre contra a corrente,
as forças revolucionárias, em todos os âmbitos da luta, impuseram várias
vitórias que, se nos descuidarmos, ficam emudecidas, submersas debaixo da
retórica dos usurpadores sintácticos
que, quando não as tornam invisíveis, banalizam as nossas batalhas. E nós, o
que fazemos? Não poucas vezes berramos como crianças a quem tiraram os
rebuçados e não poucas vezes disfarçamos com “lágrimas” a irresponsabilidade
politica de não termos dado conta para a posteridade da obra realizada. Muito
mal.
Entre os nossos, não são poucos os que aguardam o
“financiamento espectacular” para a obra prima. Não são poucos os que lamentam
a sua “má sorte” e a sua pouca “veia literária” para justificar não terem
produzido o testemunho da luta individual ou colectiva que ocorreu, e que
ocorre, nos muitos milhões de revoluções que existem no mundo e que se não vêem
à “vista desarmada”. E tudo isso implica uma forma de derrota convertida em
“culpa” pessoal com a qual muitos companheiros se lamentam diariamente enquanto
dão por perdida a oportunidade de se ressarcirem perante os que iniciam ou
continuam as batalhas que nos comprometem. E não é justo.
E, para que se não julgue que tudo o que aqui se
disse é exagerado, passemos em revista, minuciosa e sinceramente, as tantas
histórias que deveríamos ter contado sobre as lutas a que entregamos as nossas
vidas. As verdadeiras lutas, as de corpo e alma, as da coerência e da
permanência, as da unidade e as que não param nunca. Comparemos essa lista com as páginas que escrevemos
ou coleccionamos a seu respeito. Não é improvável que o balanço revele uma
paisagem desigual e desafiante, na qual o tanto que foi vivido não tenha
reflexo real nem completo no que foi publicado e difundido. Essa é uma das
nossas maiores debilidades e erros. Uma dívida enorme para com aqueles por quem
lutamos e que poderão nem sequer se ter apercebido disso. Tomaste nota?
Dr. Fernando Buen Abad Domínguez
Universidad de la Filosofía
(Tradução de Agostinho Santos Silva)
(Tradução de Agostinho Santos Silva)
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