Fátima, a versão oficial dos factos
Faz cem anos sobre as chamadas
aparições de Fátima. Tenciono assinalar aqui o centenário com o que me ocorrer
à pena.
Começo por transcrever este texto,
primeiro porque não o consegui encontrar na internet o que, se não é
inabilidade minha, considero uma grande falta; segundo porque se trata dum
documento único relativamente à versão oficial dos factos; terceiro porque
entendo que há que recuperar a imagem do seu autor enquanto vítima duma
história tão mal contada.
Artur de Oliveira Santos escreveu este relatório em 31 de Outubro de 1924.
Extraído de Tomás da Fonseca, Fátima:
Cartas ao Patriarca de Lisboa, Rio de Janeiro, Editorial Germinal,
1955,pp.365-377.
Relatório do Administrador do
Concelho de Ourém
Ex.mo Sr. Governador Civil do
Distrito de Santarém
Encarregado por V. Ex.ª de elaborar
com a máxima urgência, um relatório circunstanciado sobre a peregrinação de
Fátima e seus antecedentes, “se os promotores estão ao abrigo das leis, motivo
porque não se proibiu a peregrinação, em face das ordens transmitidas, e qual a
corporação encarregada do culto”, vou desempenhar-me dessa missão, embora não
possa, como era meu desejo, apresentar um trabalho completo, pois que assunto
de tal magnitude levam muito tempo a tratar e faltam diversos elementos que é
difícil, neste momento conseguir, tanto mais que o chamado milagre de Fátima
tem ramificação em muitos concelhos, onde principalmente impera o
espírito fanático e reaccionário, sobretudo em Leiria. Esforçar-me-ei, contudo
por corresponder, com honestidade e zelo, à prova de confiança que me é dada
por V. Ex.ª.
Em 13 de Maio de 1917, Lúcia de
Jesus, filha de António dos Santos, o Abóbora, e de Maria dos Santos
Porvilheira, que ao tempo tinha 11 anos de idade, e Francisco e Jacinta, de 9 e
7, respectivamente, filhos de Manuel Pedro Marto e Olímpia de Jesus, todos
residentes em Aljustrel, freguesia de Fátima, foram como era de costume,
apascentar, de manhã, umas ovelhas, para a Cova de Iria, que fica a dois
quilómetros da sede de freguesia e a 12 da sede do concelho. A Lúcia, que
estava fixando o Sol, disse para o Francisco e Jacinta, que lhe tinha aparecido
uma Senhora muito bonita em cima duma azinheira, vinda do lado do Sol, e que a
convidara a aparecer no dia 13 de cada mês, à uma hora da tarde, durante o
tempo de seis meses, porque tinha um segredo a dizer-lhe no mesmo sítio. Os
dois parentes (de Lúcia) nada presenciaram; só mais tarde, a instâncias de
interessados, se lembraram de dizer que também tinham visto a senhora. Convém
aqui esclarecer que a Lúcia é, na opinião de muitas pessoas, uma doente mental,
certamente devido à hereditariedade que sobre ela pesa, pois o pai morreu
vitimado pelo alcoolismo, sendo considerado o homem mais ébrio da freguesia.
Regressando a casa, a Lúcia repetiu aos pais e aos vizinhos o que dissera aos
dois parentes.
Em 13 de Junho do mesmo ano, por
ocasião da tradicional festa de Stº António, na sede de freguesia, foram à Cova
de Iria umas 60 pessoas, movidas por curiosidade, e a Lúcia lá compareceu com
os dois parentes a fitar o Sol e dizendo ver uma santa com um manto branco,
bordado a oiro e um resplendor na cabeça. A 13 de Julho, repetiu-se a cena,
tendo comparecido umas 2500 pessoas. Era o bastante para a exploração clerical.
Os Boletins Paroquiais e o Mensageiro de Leiria tocaram a rebate. O milagre
realizava-se! A Virgem Maria honrava Fátima com a sua divina presença – diziam
eles (aqueles órgãos do clero). Era necessário – acrescentavam – comparecer
ali, para ver o milagre, em 13 de Agosto. Padres e seminaristas lá foram,
arrastando consigo 12 a 15000 pessoas, tendo o concelho de Torres Novas dado o
maior contingente. O que não deixa de ser interessante (como ainda hoje) é que
o povo da freguesia de Fátima, sendo profundamente religioso, é quase
indiferente (à parte o interesse mercantil) à realização destas manifestações.
Exercia eu então o cargo de
Administrador do Concelho e na madrugada do referido dia 13, tendo deixado de
prevenção uma força da Guarda Nacional Republicana na sede do concelho,
dirigi-me, em companhia do oficial da Administração, Cândido Jorge Alho, à
povoação de Aljustrel, no intuito de trazer os três protagonistas (as crianças)
para esta vila, a fim de evitar a continuação da especulação clerical, que em
torno delas se estava fazendo. Junto da casa de habitação dos pais de Francisco
e Jacinta, já se encontrava o padre João, pároco em Porto de Mós, falando com a
mãe daqueles, e, junto a um pequeno largo, bastantes seminaristas. A Lúcia,
interrogada, a meu pedido, pelo padre, reeditou o que anteriormente, havia
dito. Convenci os pais de Lúcia, de Francisco e de Jacinta e os padres a
consentirem que as crianças fossem interrogadas pelo pároco da freguesia de
Fátima, a fim de se apurar alguma coisa de concreto, e, uma vez em Fátima, em
lugar das crianças seguirem para a Cova de Iria, como esperava mais duma dúzia
de padres, consegui trazê-las para minha casa, junto da minha família, num
carro previamente alugado. Não faltaram ameaças de morte. Chegaram mesmo dois
grupos, para tal preparados, a seguirem em automóveis, em perseguição do nosso
carro, desistindo do seu intento apenas quando souberam que o carro que me
conduzia e às crianças, se encontrava já nesta vila, protegido por força
militar.
Quando na Cova de Iria tiveram
conhecimento do caso, grupos de populares, à mistura com padres, clamaram ser
preciso ir à Aldeia (Vila Nova de Ourém), matar os republicanos e os
pedreiros-livres. Não tendo comparecido na Cova de Iria as crianças naquele
dia, o milagre não se realizou e tudo debandou sem incidente de maior. Eram
então governadores civis efectivos e substituto os srs. Drs. Manuel Alegre e
Manuel Branco, respectivamente, e era minha opinião que as crianças fossem
inspeccionadas por uma junta médica e internadas numa casa de educação,
subtraindo-as, deste modo, aos clericais, de maneira firme e precisa, para que
lhes não servissem de instrumentos de exploração. Compartilhava desta opinião o
segundo daqueles cidadãos, sendo de parecer contrário o primeiro, convencido de
que, deixando-se os clericais à vontade, a mistificação, com todos os seus elementos,
cairia pelo ridículo.
Em 13 de Setembro de 1917, nova
manifestação se realizou, tendo comparecido umas 20 000 pessoas. Os
jornais monárquicos e católicos fizeram uma propaganda tenaz por todo o país,
com estrondoso reclame, anunciando para o dia 13 de Outubro, na Cova de Iria, o
aparecimento da Virgem, que revelaria nessa ocasião a Lúcia o “grande segredo”
que lhe tinha sido confiado. Um dos concelhos onde mais propaganda se fez neste
sentido foi o de Torres Novas, chegando os padres, nas igrejas, a anunciarem,
como coisa certa, o milagre. Resultado de toda esta bem urdida publicidade: 30
a 40 000 pessoas dos mais diversos pontos do país, e até de Espanha, se
juntaram ali, para assistirem ao famoso milagre.
Este devia observar-se das 12 para
as 13 horas, mas a chuva foi torrencial, e só das 14 e meia para as 15 é que o
Sol, liberto das nuvens, começou a aparecer. Foi o momento Solene em que a
Lúcia gritou: Já lá está a Senhora! Fechem os chapéus e rezem! Uma parte
do povo fechou os chapéus, ajoelhou, fitou o Sol, fixamente, e declarou que o
astro andava à volta (“o Sol bailou”, como disse Avelino Almeida em o
Século de 15 de Outubro de 1917); a outra parte, apesar de ser também
religiosa, que não via senão o Sol a brilhar.
É muito elucidativo e importante o
artigo do Dr. Pinto Coelho, conhecido católico, no nº507 de 16 de Outubro de
1917, do jornal A Ordem que classifica de “fantasmagoria” o chamado
milagre, dizendo ter ido a Fátima, não como peregrino, mas como curioso, o que
lhe valeu dos próprios correligionários as maiores censuras. A Lúcia, que andou
nos braços de um homem, de grupo em grupo, teatralmente, revelou o que a Virgem
misteriosamente lhe dissera: “ a guerra terminou; os soldados vêm já a caminho
de casa!”. A chamada “aparição” errou lamentavelmente, pois a guerra terminou
em 11 de Novembro de 1918.
(Convém informar, de passagem, que a
mãe da Lúcia tinha um livro - Missão Abreviada - no qual, muitas vezes,
lhe lia a parte relativa à aparição de La Salette, que deve ter produzido
grande impressão no espírito da pobre criança.)
Em 13 de Novembro, nova
peregrinação, mas esta muito menos concorrida. Em 9 de Dezembro do mesmo ano, a
Associação do Registo Civil mandou aqui uma comissão composta dos cidadãos
Augusto José Vieira, Machado Toledo e Conceição Vasques, a qual realizou na
Cova de Iria um comício de protesto contra a mistificação, comício que teve
fraca concorrência do povo, porque o pároco convencera a população a não
comparecer. No regresso a esta vila, foram os oradores apedrejados,
valendo-lhes alguns soldados da Guarda Republicana que os acompanhavam. Na véspera,
no Centro Republicano de Ourém, realizara-se imponente sessão, na qual tomaram
parte as pessoas referidas e que foi imensamente concorrida e os oradores
ovacionados pelas afirmações de combate à mistificação da Cova de Iria.
Veio o Dezembrismo (ou sidonismo),
que colocou os reaccionários à vontade, e por esse motivo levantou-se uma
pequena capela no local da fantástica aparição, onde todos os meses, no dia 13,
era exibida a imagem denominada de Senhora do Rosário, oferecida por um
indivíduo de Torres Novas, de nome Gilberto Fernandes dos Santos, por alcunha o
Bicanca, o qual, junto à entrada do templo, ia recebendo as esmolas “para a
santa”, mas que, afirma-se geralmente, revertiam em benefício daquele, pois
vivendo, até então, em dificuldades, conseguiu passar a viver em situação
desafogada. Os padres não se conformaram com este recebedor e trataram do
substituir.
Continuaram as romarias todos os
meses, umas mais, outras menos concorridas, com a exibição de imagens,
irmandades, missas campais, etc., sem que houvesse da parte das autoridades a
menor proibição, ou que os promotores dos actos de culto externo necessitassem
requerer autorização para estes. Depois da queda do Dezembrismo, ainda se
realizaram procissões religiosas na via pública, as quais, depois, lhe foram
proibidas.
Em 1919, faleceu em Fátima, de
pneumonia, o pequeno Francisco, e, em Maio de 1920, no hospital D. Estefância,
em Lisboa, a pequena Jacinta, de pleurisia purulenta, sendo transportada da
Igreja dos Anjos, na capital, para o cemitério desta vila, onde ficou sepultada
no jazigo do Barão de Alvaiázere. Haviam este e outros aristocratas projectado
transportar o corpo da Jacinta, processionalmente, desta vila para Fátima, o
que nunca chegaram a fazer devido aos protestos do povo liberal.
Em 13 de Outubro do mesmo ano
(1919), a peregrinação foi pequena, devendo ter comparecido umas 6000 pessoas.
Houve diversos actos de culto externo. Antes do dia 13 de Maio seguinte, tendo
o governo da presidência do saudoso republicano coronel António Maria Baptista
recebido protestos vários para proibir a especulação, fui convidado por S. Ex.ª
para assumir o lugar de Administrador, que aceitei com a condição de serem mobilizados
todos os meios de transporte em quatro distritos, impedindo, nos dias 12 e 13,
a marcha dos que se dirigissem para Fátima. Tentaram alguns promotores de
Torres Novas que, apesar de tudo a peregrinação se fizesse, o que não
conseguiram. Tendo conseguido autorização do comandante da força, para irem à
Cova de Iria os peregrinos daquele concelho, tal não se chegou a realizar por
eu me opor. Um grupo, capitaneado pelo professor do liceu de Santarém padre
Formigão, tentou, à viva força, atravessar por entre as fileiras dos soldados,
mas estes, apenas com desembainhar as baionetas, puseram-nos a todos em
debandada. Quase ao mesmo tempo, sucedia facto idêntico noutro local, não tendo
havido, porém, mais incidentes dignos de menção. Apareceu a Lúcia vestida
de branco e com um ramo de flores na cabeça, a qual foi entregue aos pais, e o
chamado milagre não se verificou. Compareceram uma 1000 pessoas, que se
conservaram sempre na Fátima, por ser a maior parte daquela freguesia, o que
era costume, por neste dia (Quinta-Feira da Ascensão) frequentarem a igreja.
Em 13 de Junho do mesmo ano, apesar
de haver festa e feira em Fátima, nada digno de menção houve na Cova de Iria, a
não ser a ida ao local de algumas centenas de pessoas.
Depois
desta data, tendo eu deixado a Administração do Concelho, foi proibido e
permitido, sucessivamente, o culto externo, mas as peregrinações ou romarias
nunca mais tiveram a mesma importância de algumas anteriores. Posteriormente é
que o bispo de Leiria, José Alves Correia da Silva, se resolveu a intervir. O
primeiro acto foi levar Lúcia para fora de Fátima, a pretexto de a mandar
educar, o que a própria família confirma, não se sabendo, porém, do seu
paradeiro.
De
vez em quando, escreve à mãe (ou alguém escreve por ela), dizendo estar bem,
num colégio, e recomenda que ninguém duvide do milagre da Cova de Iria. Consta
estar num convento em Espanha, o que é dito pelo vizinho Casimiro Rodrigues
Esteves. Em Lisboa, na Rua dos Bacalhoeiros, Hospedaria dos Bicos, o
proprietário desta, igualmente de nome Casimiro, um velho republicano, alguma
coisa sabe sobre o assunto.
Para
avaliar o critério do Bispo, basta ler, na provisão que vai junta a este relato
e que foi publicada no jornal A Época, de Lisboa, nº1019, de 14 de Maio
de 1922, a seguinte passagem: “Demais a mais, a pequena saiu da terra, nunca
mais lá apareceu e, não obstante, o povo acorre ainda em maior número à Cova de
Iria.” A sua intolerância é de tal ordem que, em 23 de Abril de 1923, mandou
uma circular aos párocos da sua diocese, proibindo-lhes assistir a qualquer
festividade religiosa onde comparecesse a filarmónica dos Pousos
(Leiria), pelo facto de aquela ter tomado parte numa festa liberal, julgo que
comemorativa da Lei da Separação. O seu egoísmo e cupidez são grandes. A
testemunhá-lo basta a caça feita à herança de D. Constança Teixeira
Albuquerque, de Caldelas, freguesia da Caranguejeira (Leiria), uma pobre viúva
que deixou os parentes sem recursos, para legar ao bispo uma fortuna que deve orçar
por 800 contos.
O
mesmo Bispo de Leiria foi quem veio dar alento à mistificação. Inteligente e
astuto como é, procede com discrição e prudência. O dinheiro recebido da Cova
de Iria (larga depressão de terreno como o nome indica), remetido, todos os dias
13, à consignação do bispo, é incalculável. Em Maio de 1923, o semanário
republicano A Voz do Povo, de Leiria, que não foi desmentido pelos
jornais católicos, noticiava que o dinheiro recolhido no dia 13 do referido mês
somava 200 contos. Por informações que reputo fidedignas, a receita nos dias 12
e 13 do corrente mês de Outubro de 1924 foi de 120 contos. E há a notar que,
encontrando-se a igreja paroquial em obras, nenhuma das importâncias recebidas
na Cova de Iria foi entregue para a referida igreja. É tudo ensacado e levado a
S. Ex.ª, para Leiria, no próprio dia 13 de cada mês.
Em
Fevereiro de 1922, a pequena capela erguida na Cova de Iria foi destruída por
um incêndio, atribuído aos liberais; mas o que é deveras significativo é que a
imagem, que pouco antes do incêndio se encontrava exposta na capela, foi dali
retirada para casa de Manuel Carreira, do lugar de Monte Redondo, que transita,
todos os dias 13 de cada mês, para a Cova de Iria e vice-versa. Confessou o
Manuel carreira ter visto, na noite do incêndio, luz na capela, o que não era
costume, não se percebendo que, sendo ele o zelador do templo, se não
importasse com o caso.
Antes
de 13 de Maio de 1922, foi feita, pela imprensa monárquica e católica, uma
intensíssima propaganda para impressionar o espírito católico e conservador,
tendo até o próprio Diário de Notícias, de 11 de Maio de 1922, publicado
um artigo encimado por grossos caracteres, no qual se incitava o povo a visitar
o local da aparição. Esse artigo era acompanhado de fotografias dos três
videntes e da pequena capela e também da provisão do bispo de Leiria.
Compareceram 25 a 30.000 pessoas.
Em
Outubro do mesmo ano, saiu o primeiro número do semanário Voz de Fátima, que
foi distribuído gratuitamente e que actualmente deve ter uma tiragem de
20 000 exemplares, cuja impressão é paga por subscritores e que são
profusamente distribuídos, não só em Portugal, como também no estrangeiro,
fazendo a perniciosa propaganda de curas milagrosas e sobrenaturais – puras
fantasias – para explorar o vulgo, sem origem na verdade, e que a superstição
ampliou até o absurdo. Dirige o referido semanário o Dr. Manuel Marques dos
Santos, de Leiria, tudo com a aprovação do bispo.
A concorrência, no dia 13 de
Outubro, foi inferior à de 13 de Maio do mesmo ano. Houve missa campal, mas não
se realizou a procissão. Em 13 de Maio de 1923, a aglomeração foi
superior à de 13 de Outubro de 1917, mas isto devido à grande propaganda
e à circunstância de o referido dia ser domingo. A força enviada não
chegou a intervir, apesar de na Cova de Iria se efectuarem procissões sem a
permissão da autoridade.
A este tempo já estava quase
concluído um enorme poço, que o bispo de Leiria mandara fazer, para recolher as
águas pluviais, pois a Cova de Iria que, como disse, tem a designação de
depressão de terreno, deve comportar 500 pipas de água, não que ali brote, como
falsamente tem sido propagado, mas que ali armazenam, para vender ao público, o
que constitui larga receita. Começaram já a murar o terreno adquirido, que deve
ter, aproximadamente, 250 metros de comprimento por 150 de largura. A compra do
terreno deve ter custado 80 contos.
São muitos os promotores ou
interessados desta peregrinação, mas o principal é o bispo de Leiria. É quem
tudo orienta e dirige. Na procissão, a que já me referi, nomeou uma comissão
para averiguar da “veracidade do milagre” e organizar o processo segundo as
leis canónicas. Conheço alguns dos nomeados – autênticos inimigos do regime
republicano e criaturas vulgares, que antecipadamente o bispo muito bem sabe
que implicitamente lhe aprovarão por unanimidade o grande milagre. Constituem a
referida comissão os padres João Quaresma, vigário geral da diocese; Manuel
Marques dos Santos, director da Voz de Fátima; Joaquim Coelho Pereira,
prior da Batalha; Joaquim Ferreira Gonçalves Neves, prior de Santa Catarina da
Serra; Agostinho Marques Ferreira, pároco de Fátima; Manuel Pereira da Silva,
professor do Seminário; Manuel Nunes Formigão, professor do liceu de Santarém,
e Faustino G. Jacinto Ferreira, vigário da Vara de Ourém. Pelo falecimento
deste, foi nomeado o sobrinho, Faustino Ferreira, também vigário da vara. Como
as obras da cerca estão a concluir-se, deve estar também a concluir-se o
processo canónico. Nenhum orçamento ou estatuto até hoje passou pela
Administração do Concelho, nem se sabe verdadeiramente onde o dinheiro é
aplicado.
Pelo artigo 57 da Lei da Separação,
só serão permitidas manifestações de culto externo, onde e quando constituírem
um costume inveterado. Ora, na via pública, na estrada 121 (ramal), tal não
acontece e por isso não poderão ser permitidos actos de culto externo. Na Cova
de Iria foi feita da capela uma casa, espécie de chalé, onde os padres têm a
santa, pregam sermões e dizem missa. Foi-lhes retirada autorização para
qualquer acto de culto fora daquele local.
A multidão que vem à Cova de Iria é
composta de diferentes classes. Vão os crentes ingénuos e simples, arrastados
pela crendice; vão os negociantes de comes-e-bebes e vendilhões de rosários,
das estampas, etc.; vão os petisqueiros com os seus farnéis; vão os curiosos,
os descrentes, politiqueiros, etc., uns sozinhos, outros com a família ou os
amigos, mas a grande maioria é decerto constituída por gente rude, de longes
terras, onde predomina o fanático e o reaccionário. Os concelhos que fornecem maior
número de pessoas são: Torres Novas, Vila de Rei, Mação, Proença-a-Nova,
Oleiros, Idanha-a-Nova, Fundão, Sardoal, Ferreira do Zêzere, Sabugal, Vila
Velha de Ródão, Pedrogão Grande, Figueiró dos Vinhos, Ponte de Sor, Alter do
Chão, Fronteira, Pombal, Alvaiázere, Porto de Mós, Batalha, etc.
Fátima é hoje, no país, uma etapa da
Reacção, que procura ponto de apoio para base da sua resistência. O facto de se
não ter impedido eficazmente a peregrinação deveu-se simplesmente a terem as
forças armadas chegado tarde. É certo que foram postas à minha disposição forças
das unidades mais próximas porque aquelas que chegaram no dia 12, à tarde, eram
insuficientíssimas, mas, requisitando mais, tinha dois caminhos que trariam
para o Regime inconvenientes novos.
As forças que eu requisitasse das
unidades mais próximas, só aqui chegariam no dia 13. Ora no dia 12, já estavam
em Fátima, seguramente, 25000 pessoas. Com o auxílio de novas forças poderia eu
ter ido a Fátima dispersar 50000 a 60000 pessoas? O sangue que fatalmente
correria não seria uma arma terrível contra o governo e contra o Regime? Por
outro lado, não me utilizando a força, cairia, pelo menos, no ridículo, e não
querendo, por princípio algum, desobedecer a V. Ex.ª, preferi não requisitar
mais a tropa e mandar a pequena força para onde fora requisitada, fora do local
da Cova de Iria, tanto mais que a mesma força seria suficiente para impedir a
saída da procissão de Fátima, caso teimassem em realizá-la, o que,
todavia, não era preciso, pois que eu já tinha conseguido impedir a sua
realização por outros meios mais dissuasórios, embora não deixassem de causar
receio ao pároco da freguesia e a outras pessoas.
Às 22 horas da noite de 12, veio o
Dr. Andrade e Silva (a pedido da Sr.ª D. Madalena Serrão Machado, que tem feito
a perigosa propaganda da cura do cancro pelas águas pluviais da Cova de Iria)
pedir a realização da procissão. Neguei-lhe terminantemente permissão para esta
e fiz-lhe saber que no dia 13, prenderia o pároco da freguesia. Pediu-me então
aquele cidadão que tal não fizesse, tão convencido estava o Dr. Andrade e Silva
de que eu tinha esse intuito.
Na comunicação enviada a V. Ex.ª,
julgo que em 10 do corrente mês, frisava eu que havia duas maneiras de
intervir.
1ª) O Governo mobilizaria os meios
de transporte em diversos distritos; 2ª) ou, então, a Guarda Republicana
impediria que se realizassem actos de culto externo. Embora, como V. Ex.ª
sabe, me prejudique materialmente continuar por muito tempo neste lugar, que V.
Ex.ª se dignou confiar-me, eu não terei essa dúvida, se assim for preciso, de
nele me conservar, porque nunca hesitei no cumprimento dos deveres de
republicano, que me prezo de ser, desde há longos anos.
A Reacção vai triunfando,
hipocritamente, e a Liberdade perde terreno, fazendo-lhe concessões. Aquela
está fora da lei e é necessário metê-la na ordem. Julgo que há maneira de
jugular a Reacção da Cova de Iria. Quando o Governo não possa, ou, para melhor
dizer, não queira mobilizar os meios de transporte em diversos distritos,
tomar-se-iam, a pouca distância da Cova de Iria, as embocaduras das estradas
que conduzem a Fátima, anunciando-se devidamente o caso com certa antecedência.
Fazendo isto, durante meses consecutivos estou certo que a Reacção sofreria um
grande golpe, deixando a pretensão de ter um Estado dentro do Estado.
Junto vários documentos.
Saúde e fraternidade!
Vila Nova de Ourém, 31 de Outubro de
1924.
O Delegado do Governo encarregado do
inquérito,
ARTUR DE OLIVEIRA SANTOS.
(extraído do blog ‘o rei dos leitões)
2 comentários:
A verdade é que a igreja católica soube explorar muito bem a situação!E continua...consumidores religiosos não faltam!Abraço
Bom dia, excelente artigo. Pode-se saber onde se encontra este documento?
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