“É a memória que nos constrói, como cidadãos livres
numa democracia plena.”
“Uma
bomba a iluminar a noite do Marão”
(Edições Afrontamento, Porto)
Jorge Sarabando
Há 44 anos, um atentado bombista matou dois jovens
transmontanos na flor da vida: Maximino de Sousa e Maria de Lurdes Correia.
Foram vítimas do ódio político. O Padre Max, assim conhecido na comunidade, era
tido como um Padre com ideias comunistas, e a Maria de Lurdes era uma jovem
estudante, alegre e espontânea, a quem dera boleia.
Tratou-se de um crime político, planeado e executado
por um comando da rede terrorista da extrema-direita, com apoios locais, que
aconteceu numa fase já declinante do processo revolucionário, justamente em 2
de Abril de 1976, dia em que o Presidente da República, General Francisco da
Costa Gomes, promulgou a Constituição, no momento seguinte à sua votação final.
O golpe de 25 de Novembro acabou com a fase mais
criadora da Revolução. O Governo e a Assembleia Constituinte continuaram em
funções, mas havia forças que pensavam poder ainda reverter o curso da
História. O período entre Novembro de 75 e Abril de 76 foi dos mais violentos e
mortíferos, tendo sido cometidos 97 atentados bombistas. Lembro o assassínio a
tiro, na própria noite de 25 de Novembro, do operário vidreiro e sindicalista
António Almeida e Silva, numa rua do Porto, a morte de Rosinda Teixeira, em
Santo Tirso, de duas pessoas da Embaixada de Cuba, de um cidadão junto do CT
Vitória, do PCP, em Lisboa, vítimas de explosões, sem esquecer, noutro quadro,
a morte, por disparos da GNR, de quatro pessoas, numa pequena multidão que se
manifestava pacificamente, no final do ano, junto à cadeia de Custóias, onde
estavam detidos militares de esquerda, acusados de envolvimento no 25 de
Novembro. Foi nessa época que ocorreu o atentado bombista na Câmara Municipal
de Vila Real, que por pouco não atingiu o Presidente da Comissão
Administrativa, Rogério Fernandes, conhecido militante do PCP e amigo do Padre
Max. Foi na mesma altura que uma bomba destruiu o carro do médico de Chaves
Maximino Cunha. O crime infame que vitimou o Padre Max e a estudante Maria de
Lurdes não foi um caso isolado.
Um dos méritos do livro de Daniela Costa é o de
mostrar o outro lado da História, para além dos números, dos factos e da sua
interpretação. São as pessoas, os seus sonhos, as vivências, as emoções, os
desejos, os conflitos, o sofrimento, o enfrentamento de interesses, o entorno
social, o caldeio de lutas, a miséria moral e a grandeza humana, os acasos e as
causas, o encanto e o desencanto, a sordidez dos actos e a beleza da vida, a
inquietação, a magia, o mistério, o egotismo e a generosidade e o amor em
dádiva, tudo isto, e muito mais do que isto, flui na leitura de um texto que
transcende o tempo e o lugar.
Outro mérito advém do modelo narrativo. A voz da
autora desdobra-se em outras vozes, todas elas com densidade própria,
coloração, respiração, e uma autenticidade que nos transporta às fragas do
Marão e às lonjuras, ao cheiro da terra, e aos socalcos do Douro, lá onde a mão
humana esculpiu a paisagem. Uma escrita com rara mestria que permitiria mesmo
uma expressão cénica pois, uma a uma, em diferentes registos, como que se
apresentam num proscénio.
Logo de início uma primeira figura, antecedendo as
demais, assim fala: “Os meus dedos grossos de trabalho e velhice
arranham-me as maçãs do rosto de cada vez que enxugo estas lágrimas que não me
deixam”. E com isto se anuncia o dramatismo da acção.
Em outras falas se cruzam palavras como sonho, fuga,
liberdade, que lembram aquele verso de Torga “ grandes serras paradas
à espera de movimento”. E com isto se define a essência de uma
contradição: a fixidez, a imobilidade do que está, e a mudança a que se aspira.
Outra figura diz detestar um quadro torto e uma sala
desarrumada. E com isto revela a fonte do desajustamento que o incomoda: não é
a desordem das coisas mas sim a desordem das pessoas que não aceitam a
perpetuação das desigualdades.
As figuras sucedem-se cada uma com o seu testemunho.
Sempre ausentes e sempre presentes lá estão o Padre Max e a Maria de Lurdes
através das palavras de quem os conheceu, e amou ou odiou.
Lá vem aquela suposta avó, mulher do campo digna,
honesta, carinhosa, a quem os filhos emigrantes permitiram uma vida melhor na
cidade, e que tanto estimava o seu hóspede Padre Maximino.
Lá vêm os colegas da Lurdes e alunos do Padre Max, a
quem este apoiava com aulas gratuitas para poderem prosseguir os estudos.
Lá vêm os sacerdotes amigos de Max, um mais
compreensivo, outro mais distante.
Lá vem o prelado com suas blandícias, espelhando as
contradições da Igreja.
E o cacique de direita e suas más companhias.
E o grande proprietário do Douro a quem um dia as
trabalhadoras reclamaram o justo pagamento.
E uma colega que juntava a altura da sua condição
social à baixeza dos seus sentimentos.
E o filho família, de raiva exposta e verbo radical,
um tanto aventureiro.
E o activista sindical da UDP que lutava na empresa
por melhores salários.
E gente da rede terrorista e dos interesses de classe
que serviam.
E o advogado, corajoso e persistente, que não deixou
cair o caso na obscuridade.
E personagens luminosas, por ideais e afectos, e
outras sombrias, pela trama de ódios e violências.
Uma a uma chegam ao proscénio e falam, os discursos
não se cruzam mas vão construindo um quadro. Os percursos pessoais, as relações
humanas, onde não falta um enredo amoroso e, em fundo, o eco de lutas sociais,
pela devolução dos baldios aos povos, pela justa paga do trabalho nas vindimas
e na apanha da azeitona, ou em torno da Gestão da Casa do Douro.
Foi a época das grandes manifestações, como a que foi
organizada pela Igreja, com pretexto no caso da Rádio Renascença, mas que,
talvez por diligências do PCP, designadamente junto do Bispo, e um Apelo
dirigido aos cristãos de Vila Real, não causou violências, como, entre outras
cidades, aconteceu em Braga, onde o Centro de Trabalho foi destruído.
Ou a manifestação em Lamego contra os militares do MFA
da Comissão de Gestão da Casa do Douro. “Nem Cunhal nem Pardal” era o grito de
guerra de uma multidão arrebanhada pelos caciques e que chegou à Assembleia
Constituinte pela voz de um deputado da região.
Cenas da luta de classes em Trás-os-Montes, dir-se-á.
O livro de Daniela Costa é isto, mas é muito mais do que isto, porque tem o dom
da boa literatura: desde início a leitura nos prende e logo nos transporta e
nos situa num outro mundo, e nos coloca dentro de uma história, como se
tivéssemos também conhecido e convivido com o Padre Max, um jovem bom,
generoso, um cristão convicto, um homem de fé.
Falámos das vítimas, falemos agora da rede terrorista
a que já nos referimos, responsável por 566 actos violentos, entre Maio de 75 e
Abril de 77, entre os quais 310 atentados bombistas e 194 incêndios e assaltos,
tendo como alvo forças de esquerda e o movimento sindical.
Quem a constituía? O ELP, o MDLP, a rede Maria da
Fonte e outras organizações congéneres, que tinham como base logística a
Espanha franquista, onde actuavam com nomes de fachada como a empresa
Tecnomotor ou a Fundação Nossa Senhora de Fátima. Uma das melhores fontes para
conhecer este mundo sórdido é o livro de Maria José Tíscar “A
contra-revolução no 25 de Abril” (edições Colibri).
Quem a dirigia? Inicialmente antigos dirigentes da
PIDE como Barbieri Cardoso e Cunha Passo, ou o inspector Meneses Aguiar ou o
legionário Rebordão Esteves Pinto, a que se juntou depois a corte spinolista
que fugiu para Espanha, após o golpe falhado de 11 de Março.
Quem eram os efectivos? Antigos agentes da PIDE e
legionários, alguns colonos inconformados, mercenários, fascistas convictos,
gente a mando dos caciques, um certo lumpen de fácil
recrutamento.
Quem os financiava? Banqueiros e grandes empresários
que nunca aceitaram o 25 de Abril e muito menos o rumo socialista que tomou e
veio a ser consagrado na Constituição, além de conhecidas agências de países da
NATO.
Os crimes foram punidos? As primeiras prisões são do
verão de 76, efectuadas pela Directoria do Porto da Polícia Judiciária, mas
poucos foram os autores morais e materiais presos e menos os condenados. Em
geral beneficiaram de uma teia de cumplicidades que lhes permitiu encontrar
boas soluções de vida, e alguns vieram até a ser distinguidos pelo poder
político emergente.
Houve mesmo quem publicasse livros em que se gaba dos
seus feitos. Foi o caso de um tal Manuel Gaspar, de quem o jornalista Ricardo
Saavedra escreveu as memórias (O Puto, edições Quetzal). Depois
de ter participado no golpe racista de 7 de Setembro de 74 em Moçambique, donde
era natural, e na marcha até Luanda com as forças sul-africanas que tentavam
impedir a independência de Angola em 11 de Novembro, sob a direcção do MPLA,
desembarcou em Portugal, onde logo entrou ao serviço da rede terrorista. É um
dos participantes confessos no assassínio do Padre Max e da Maria de Lurdes
que, nas pgs, 337 a 340, descreve com detalhe. É um relato impregnado de
cinismo onde defende, como é habitual nestes casos, que a intenção não era
matar mas apenas assustar. Começa, com certo gáudio, a descrever a cena em que
“à hora certa”…”lá vinha Maria de Lurdes, toda fresca e radiante nos seus
dezoito ou dezanove anos”, para terminar explicando as
mortes: “Só que o destino do casal, infelizmente, estava
traçado, e contra o destino não há planos que resistam”. Por
curiosidade se acrescenta que o indivíduo esteve preso em Alcoentre, por outras
acusações, donde fugiu passado pouco tempo.
No mesmo livro se transcreve um artigo do jornal
fascista A Rua, de 8 de Junho de 77, onde se fazia a afirmação de
que a Maria de Lurdes estava “grávida de 3 meses”, que ficou provado, mais
tarde, ser uma abjecta calúnia.
O fascismo não é coisa do passado, está de regresso e
em força. Há uma direita tradicional, que se move no campo democrático, que tem
da violência fascista uma visão instrumental pelo que possa ser útil para os
seus interesses de classe. Tende a contemporizar ou condescender porque teme,
acima de tudo, o ascenso revolucionário que a crise do capitalismo possa gerar
nas classes trabalhadoras. A grande burguesia, a alta finança, têm com as
organizações fascistas laços de cumplicidade e mesmo vínculos orgânicos, muito
resguardados. Como aconteceu nos anos 20 e 30 com os resultados conhecidos.
Como aconteceu em Portugal nos anos da Revolução. Como hoje vai acontecendo na
Europa ou no continente americano.
O livro de Daniela Costa, para além do valor literário
que tem, é um contributo mais para conhecer a revolução e a contra-revolução no
Portugal de Abril.
É a memória que nos constrói, como cidadãos livres
numa democracia plena.
Abril de 2020
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