terça-feira, 17 de agosto de 2021

Uma certa esquerda

Gustavo Carneiro

Uma certa esquerda

Os acon­te­ci­mentos re­centes em Cuba trou­xeram de novo à tona a exis­tência de uma certa es­querda, que pelo menos em ma­té­rias de po­lí­tica in­ter­na­ci­onal se dis­tingue da di­reita pela re­tó­rica uti­li­zada e pouco mais. Uma es­querda sur­gida com a in­tenção de «co­meçar de novo», que se propõe a «travar a luta toda», mas que não atribui qual­quer valor à so­be­rania dos Es­tados e aos di­reitos dos povos e par­tilha com o im­pe­ri­a­lismo uma mes­mís­sima con­cepção de de­mo­cracia.

Assim, quando Cuba se en­con­trava (li­te­ral­mente) na mira dos EUA, lá veio a con­versa das li­ber­dades e da di­ta­dura, a re­la­ti­vi­zação dos efeitos do blo­queio, o apa­ga­mento das ex­tra­or­di­ná­rias con­quistas po­lí­ticas, eco­nó­micas e so­ciais al­can­çadas pela Re­vo­lução cu­bana. Esta es­querda ga­rante não querer uma in­ter­venção contra o país ca­ri­benho, mas no es­sen­cial as­sume a nar­ra­tiva que lhe abre ca­minho.

Mas nada disto é novo. Já em 2011, nas vés­peras da agressão contra a Líbia, re­pre­sen­tantes dessa mesma es­querda vo­taram fa­vo­ra­vel­mente a re­so­lução do Par­la­mento Eu­ropeu com que se pro­curou jus­ti­ficar a cri­ação de uma zona de ex­clusão aérea na­quele país do Norte de África, aju­dando na prá­tica a le­gi­timar aos olhos da opi­nião pú­blica a trans­for­mação da NATO em Força Aérea dos re­beldes de­mo­crá­ticos anti-Ka­dafi – que, só não via quem não queria, eram afinal grupos ter­ro­ristas li­gados à Al-Qaeda e ao Es­tado Is­lâ­mico, com mal dis­far­çadas li­ga­ções às po­tên­cias oci­den­tais.

En­tre­tanto, a Líbia está des­truída e o seu povo en­contra-se à mercê de grupos ar­mados – sem se­gu­rança, sem di­reitos, sem de­mo­cracia, pra­ti­ca­mente sem país. Mas ao menos já não re­pre­senta um obs­tá­culo às pre­ten­sões do im­pe­ri­a­lismo na re­gião nem cons­titui, apa­ren­te­mente, um in­có­modo à ex­trema sen­si­bi­li­dade de­mo­crá­tica dessa es­querda.

No que res­peita a outra tra­gédia re­cente, a da Síria, a sua pos­tura foi em tudo se­me­lhante: par­ti­lhou alvos, ali­ados e nar­ra­tivas com o im­pe­ri­a­lismo, ca­valgou sim­pli­fi­ca­ções e mis­ti­fi­ca­ções, ajudou a tra­vestir mer­ce­ná­rios e ter­ro­ristas de cân­didos de­mo­cratas. O saldo desta agressão é co­nhe­cido: meio mi­lhão de mortos, mi­lhões de des­lo­cados, pro­blemas eco­nó­micos e so­ciais agra­vados. De pouco va­lerão, de­pois, as in­fla­madas pro­cla­ma­ções em de­fesa dos re­fu­gi­ados, se do que estes fogem é pre­ci­sa­mente da guerra e da des­truição às quais essa es­querda deu co­ber­tura po­lí­tica.

Por ex­plicar fica a di­fícil con­ci­li­ação entre a apre­goada con­dição de es­querda e este ali­nha­mento tá­cito com a mais brutal ex­pressão do ca­pi­ta­lismo na sua fase im­pe­ri­a­lista. E ainda a ab­so­luta falta de so­li­da­ri­e­dade com os povos ví­timas de – se­gu­ra­mente de­mo­crá­ticas – agres­sões, sejam mi­li­tares ou eco­nó­micas.

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