“A pobreza,
e a obediência quem
a conserva é por
força.”
Matias Aires
(Reflexões sobre a vaidade dos homens)
-
As imagens
gravadas a fogo
de emoção
instalam-se, com
tamanho vigor
na memória, que
delas dificilmente nos
podemos libertar:
Calçada
íngreme, o macho,
atrelado à carroça
repleta de pedra
tentando conquistar o
percurso impossível,
as ferraduras sem
apoio faiscando, e o animal
impotente não
conseguia avançar. O carroceiro,
dando ao termo o
significado mais
pejorativo,
praguejava e de chibata
em riste
flagelava, a golpes
de raiva incontida,
o animal indefeso.
Numa tentativa para
continuar a marcha,
as patas dianteiras
fraquejaram, ficando ajoelhado, preso
aos varais, como
alguém que
implora piedade.
Celerado, o monstro
desce da carroça
e com o cabo
do chicote descarrega toda
a brutalidade sobre
o animal
prostrado, procurando que
o pobre se levante
para continuar
o calvário, e, porque
não o consegue,
num paroxismo de
barbárie, com
ambas as mãos em
tenaz, agarra o focinho
do macho e morde-o
demorada e ferozmente.
Pareceu-me que
o animal
chorava; eu, que
ainda nem
sequer
frequentava a primária,
fugi soluçando. A imagem
persegue-me sempre
nas horas de injustiça
que, na generalidade,
se abate sobre
os mais fracos.
Passados
alguns anos,
na primavera da minha
juventude, deparo com
um polícia
que espancava com
o cassetete um
bêbado que
nem forças
tinha para
se levantar. Intervim! Fui
preso juntamente
com o ébrio.
Julgado sumariamente e condenado a dez
dias de prisão;
impulso decisivo
para consolidar
opções e solidificar,
para sempre,
a revolta consciente.
A personalidade
baliza-se por miríades
de aparentes pequenos
nadas e, assim,
aos poucos,
vamos construindo a escala
de valores que,
uma vez
assumida, forçoso
é cumpri-la. E é neste compromisso
que encontramos
o nosso próprio
equilíbrio.
Sempre
recusei partilhar com
o carroceiro ou
o polícia de então
o caminho
deslizante para a ignomínia,
colocando-me na rampa
íngreme e difícil
a caminho da justiça
e da liberdade.
Hoje,
assisto e resisto aos golpes
de chicotes-lei, revestidos de pergaminhos
democráticos, onde
os poderosos
zurzem aqueles que
lhes puxam a carroça
dos cifrões com
vocábulos melífluos
e, sem escrúpulos
nem piedade,
tentam impor-lhes caminhos
escorregadios atulhados de fraudes,
a caminho da burra
dos banqueiros.
Em
nome da
modernidade, dilata-se e aprofunda-se, cada
vez mais,
o fosso entre
os que nada
têm e os que tudo
açambarcam, a classe média,
os pequenos comerciantes,
agricultores e industriais
junta-se aos assalariados
para onde,
aos poucos, vão
escorregando também
as profissões liberais.
E todos estes
trabalhadores, para
que possamos ser
competitivos, deverão nivelar
salários e direitos,
dolorosamente
conquistados, pelos
dos países onde
se trabalha por
dez réis
de mel coado. E dentro
de uma lógica
redutora, escabrosa,
desumana, para
sermos cada vez
mais atractivos
aos investidores,
teremos que nos
despojar de tudo
o que nos
distingue da pobre
besta que
me fez chorar.
O talentoso
Alphonse Daudet, na colectânea de contos
reunidos em ‘Lettres
de Mon Moulim’ brinda-nos com
“La mule du Pape” a qual
com ou
sem rancor,
esperou sete anos
para, no local
exacto e no momento
preciso, usar
a única mas
poderosa arma
que lhe
fora concedida:
o coice.
Não
percamos a esperança;
há em cada
um de nós
a paciência e a força
da célebre mula
papal, com
uma importante diferença:
hoje tudo
se passa a grande
velocidade.
Os carroceiros
chegaram ao poder, há que
afinar o coice.
É URGENTE!
4 comentários:
Que belo texto.
Lê-lo, impõe logo a vontade e a necessidade de ir preparando o coice, não faltando à manifestação de sábado.
Um beijo.
Vamos ver o tamanho do coice no prôximo sâbado....
Texto bem "cidado", gostei de o ler e de o viver. Uma abraço, para amanhã já desmarquei todos os compromissos.
Comovente texto que exprime o destino escolhido de uma vida.Quando vivi em Moçambique, assisti, era um adolescente, a um grupo de energúmenos brancos a fingirem que violavam uns petizes negros. As crianças choravam, os brancos galhofavam. Levei a mão ao cinto, uma fração de segundo para decidir espancar deles e ser espancado por todos eles. Esse "instinto" é a moralidade.
Enviar um comentário