(Foto de José Luís Mendes)
Quando escribas
pigmeus bolsam sobre o Alentejo é forçoso recordar gigantes.
O Alentejo, por Miguel Torga
Em
Portugal, há duas coisas grandes, pela força e pelo tamanho: Trás-os-Montes e o
Alentejo. Trás-os-Montes é o ímpeto, a convulsão; o Alentejo, o fôlego, a
extensão do alento. Províncias irmãs pela semelhança de certos traços humanos e
telúricos, a transtagana, se não é mais bela, tem uma serenidade mais criadora.
Os espasmos irreprimíveis da outra, demasiado instintivos e afirmativos, não
lhe permitem uma meditação construtiva e harmoniosa. E compreende-se que fosse
do seio da imensa planura alentejana que nascesse a fé e a esperança num
destino nacional do tamanho do mundo. Só daquelas ondas de barro, que se
sucedem sem naufrágios e sem abismos, se poderia partir com confiança para as
verdadeiras. Enquanto a nação andava esquiva pelas serras, ninguém se atreveu a
visionar horizontes para lá da primeira encosta. Mas, passado o Tejo, a grei
foi afeiçoando os olhos à grande luz das distâncias, e D. Manuel pôde receber
ali a notícia da chegada de Vasco da Gama à Índia.
Terra
da nossa promissão, da exígua promissão de sete sementes, o Alentejo é na
verdade o máximo e o mínimo a que podemos aspirar: o descampado dum sonho
infinito, e a realidade dum solo exausto.
Há
quem se canse de percorrer as estradas intermináveis e lisas desse latifúndio
sem relevos. Há quem adormeça de tédio a olhar a uniformidade da sua paisagem,
que no inverno se veste dum pelico castanho, e no verão duma croça madura. Que
é parda mesmo quando o trigo desponta, e loura mesmo quando o ceifaram.
Queixam-se da melancolia dos estevais negros e peganhosos, que meditam a sua
corola branca um ano inteiro, da semelhança aflitiva das azinheiras, que
parecem medidas pelo mesmo estalão, e não distinguem nos rebanhos que
encontram, quer de ovelhas, quer de porcos, as particularidades que
individualizam todo o ser vivo. Afeitos à variedade do Norte, que até aos
bichos domésticos consente cara própria e personalidade, aflige-os a constante
do Sul, que obriga todo o circunstancial a ocupar o seu lugar de zero diante do
infinito. Perdidos e sós no grande descampado, sentem-se desamparados e
vulneráveis como crianças. Amedronta-os a solidão de uma natureza que não se
esconde por detrás de nenhum acidente, corajosa da sua nudez limpa e total.
Eu,
porém, não navego nas águas desses desiludidos. A percorrer o Alentejo, nem me
fatigo, nem cabeceio de sono, nem me torno hipocondríaco. Cruzo a região de lés
a lés, num deslumbramento de revelação. Tenho sempre onde consolar os sentidos,
mesmo sem recorrer aos lugares selectos dos guias. Sem necessitar de ir ver o
tempo aprisionado nos muros de Monsaraz, de subir a Marvão, que me lembra um
mastro de prendas erguido num terreiro festivo, de passar por Água de Peixes,
que é um albergue de frescura e de beleza na torreira dum caminho, ou de
visitar a Sempre-Noiva, onde há perpètuamente um perfume de flores de
laranjeira a sair do rendilhado das janelas manuelinas. Embriago-me na pura
charneca rasa, encontrando encantos particulares nessa pseudo-monotonia rica de
segredos. Nada me emociona tanto como um oceano de terra estreme, austero e
viril. A palmilhar aqueles montados desmedidos, sinto-me mais perto de Portugal
do que no castelo de Guimarães. Tenho a sensação de conquistar a pátria de
novo, e de a merecer. O chão das outras províncias já se não vê, ou porque vive
coberto pela verdura doméstica de oito séculos, ou porque a erosão levou toda a
carne do corpo e deixou apenas os ossos. Mas a terra alentejana pode
contemplar-se ainda no estado original, virgem, exposta e aberta. E é nela que
encho a alma e afundo os pés, num encontro da raiz com o húmus da origem.
Abraço numa ternura primária as léguas e léguas duma argila que permanece
disponível mesmo quando tudo parece semeado. O corpo, ali, pode ainda tocar o
barro de que Deus o criou.
Mais
do que fruir a directa emoção dum lúdico passeio, quem percorre o Alentejo tem
de meditar. E ir explicando aos olhos a significação profunda do que vê. Porque
cada propriedade se mede por hectares, são em redil os aglomerados, respeitosos
da extensão imensa que os circunda, e um suíno, ou relegado à sua malhada, ou a
comer bolota no montado, não faz parte da família, – é que o alentejano pôde
guardar a sua personalidade. E talvez nada haja de mais expressivo do que esse
limite nítido entre a intimidade do homem e a integridade do ambiente.
Assegura-se dessa maneira a conservação duma dignidade que o bípede não deve
alienar, nem a paisagem perder. Se há marca que enobreça o semelhante, é essa
intangibilidade que o alentejano conserva e que deve em grande parte ao
enquadramento. O meio defendeu-o duma promiscuidade que o atingiria no cerne.
Manteve-o vertical e sozinho, para que pudesse ver com nitidez o tamanho da sua
sombra no chão. Modelou-o de forma a que nenhuma força, por mais hostil, fosse
capaz de lhe roubar a coragem, de lhe perverter o instinto, de lhe enfraquecer
a razão. E é das coisas consoladoras que existem contemplar na feira de
qualquer cidade alentejana a compostura natural dum abegão, ou vê-lo passar ao
entardecer, numa estrada, com o perfil projectado no horizonte, dentro do seu
carro de canudo. É preciso ter uma grande dignidade humana, uma certeza em si
muito profunda, para usar uma casaca de pele de ovelha com o garbo dum
embaixador.
Foi a
terra alentejana que fez o homem alentejano, e eu quero-lhe por isso. Porque o
não degradou, proibindo-o de falar com alguém de chapéu na mão.
Mas
não são apenas essas subtis razões éticas e geográficas que me fazem gostar do
Alentejo. Amo também nele os frutos palpáveis duma harmonia feliz entre o barro
e o oleiro. Amo igualmente o que o homem fez e a terra deixou fazer. Diante de
um tapete de Arraiolos, ou a ouvir uma canção a um rancho de Serpa, implico o
habitante e o habitado no mesmo processo criador, e louvo-os no mesmíssimo
entusiasmo. Não há arte onde o homem não é livre e a natureza não quer. Dando
às mãos ágeis e fantasistas materiais nobres e moldáveis – o mármore, o cobre,
a lã, o coiro, e o barro –, a terra alentejana quis que a vida no seu corpo
tivesse beleza. E de Norte a Sul, desde as campanhas da Idanha, que já lhe
pertencem, às figueiras algarvias, os seus montes, as suas aldeias, as suas
vilas e as suas cidades são marcados por um selo de imaginação e de graça. Aqui
uma varanda onde um ferreiro fez renda, acolá um pátio onde um pedreiro inventou
uma nova geometria, além uma oficina onde um caldeireiro fabrica ânforas
esbeltas e vermelhas como cachopas afogueadas. Aproveitando os incentivos do
meio e os recursos do seu génio, o alentejano faz milagres. A própria paisagem
sem relevo o estimula. Faltava ali o desenho e a arquitectura, que nas outras
províncias existem na própria natureza. Pois bem: concebeu ele o desenho e a
arquitectura. E, na mais rasa das planícies, ergueu essa flor de pedra e de luz
que é Évora!
Beja
tem a sua torre de mármore, com uma tribuna para ver meio Portugal; Portalegre
os seus palácios barrocos, para encher de solidão; Elvas o seu aqueduto de sede
arqueada e a sua feiura para meter medo aos Espanhóis; Estremoz a sua praça do
tamanho de uma herdade. Mas Évora olha os horizontes do alto do seu zimbório
espelhado, povoa as casas de lembranças vivas e gloriosas, e, sequiosa apenas
do eterno, risonha e aconchegada, enfrenta as agressões do transitório com a
força da beleza e a amplidão do espírito.
Será
talvez alucinação de poeta. Mas porque nela se documenta inteiramente a génese
do que somos, o que temos de lusitanos, de latinos, de árabes e de cristãos, e
se encontra registado dentro dos seus muros o caminho saibroso da nossa
cultura, – se estivesse nas minhas mãos, obrigava todo o português a fazer uma
quarentena ali. Uma lei pública devia forçá-lo a entrar na cidade a desoras,
numa noite de luar. E, sem guia, manda-lo deambular ao acaso. Seria um filme
maravilhoso da história pátria que se lhe faria ver, com grandes planos,
ângulos imprevistos, sombras e sobreposições. Uma retrospectiva completa do que
fizemos de melhor e mais puro no intelectual, no político e no artístico. Só de
manhã seria dado ao peregrino confirmar com a luz do sol a luz do écran. E se
ao cabo da prova não tivesse sentido que num templo de colunas coríntias se
pode acreditar em Diana, numa Sé românica se pode acreditar em Cristo, e num
varandim de mármore se pode acreditar no amor, seria desterrado.
Compreender
não é procurar no que nos é estranho a nossa projecção ou a projecção dos
nossos desejos. É explicar o que se nos opõe, valorizar o que até aí não tinha
valor dentro de nós. O diverso, o inesperado, o antagónico, é que são a pedra
de toque dum acto de entendimento. Ora o Alentejo é esse diverso, esse
inesperado, esse antagónico. Tudo nele é novo e bizarro para quem o visita. Os
arcos, as silharias, as abóbadas e os coruchéus das suas casas; a açorda de
coentro e o gaspacho de alho e vinagre das suas refeições; as insofridas
parelhas de mulas guisalheiras a martelar as calçadas ao amanhecer; as pavanas
cinegéticas que oferece aos convidados; os magustos de bolota; os safões dos
homens e o chapéu braguês das mulheres – são ferroadas no nosso cotidiano. Mas
o que tem interesse é precisamente revelar aos olhos, ao paladar e aos ouvidos
a novidade dessas descobertas. Mostrar-lhes a originalidade de uma vida que se
passa ao nosso lado, e tem o inesperado de uma aventura. E mostrar-lho
carinhosamente! Sem espírito de simpatia, tudo se amesquinha e diminui. E
coisas grandes, como uma semeada ou uma ceifa no Redondo, podem ser reduzidas à
pequenez duma vessada ou duma segada beiroa.
Quem
vai ao mar, prepara-se em terra – diz o ditado. Aplicando a fórmula ao
Alentejo, teremos de nos preparar para entrar dentro dele. Será preciso quebrar
primeiro a nossa luneta de horizontes pequenos, e alargar, depois, o compasso
com que habitualmente medimos o tamanho do que nos circunda. Agora as
distâncias são intermináveis, e as estrelas, no alto, brilham com fulgor
tropical. Teremos, portanto, de mudar de ritmo e de visor.
O
Alentejo, visitado por alguém que leve consigo a capacidade emotiva e
compreensiva de um verdadeiro curioso, é um Sésamo que se abre. As suas fainas,
os seus costumes, as mutações impressionantes do seu rosto quando tem frio ou
quando tem calor, os seus trajes e a sua própria fala – são outros tantos
motivos de meditação e admiração. Mas o que nele é sobretudo extraordinário e a
sua inflexível determinação de conservar uma fisionomia inconfundível, haja o
que houver. Pode-se preferir uma região mais maneira ou mais angustiada, e uma
gente menos soberba, mais autênticamente humana, e mais sinceramente generosa.
Herdades mais à medida dos pés, cultivadas por semelhantes sem o ar de fidalgos
a gozar férias rurais. Mas não se pode negar a evidência duma terra que merece
como nenhuma este nome maternal e austero, e muito menos a dos filhos altivos e
afirmativos que dá, imaginários como poetas e duros como azinhos. Cepa e
rebentos de tal modo unidos e conjugados, que formam como que um só corpo e um
só espírito. Um corpo hipertrofiado, que hipertrofia o espírito por indução.
O
alentejano que sobe ao alto do castelo de Évora-Monte, erguido ali ao lado da
térrea casinha da Convenção onde a concórdia da família portuguesa foi
assinada, ele que tem o sangue de Giraldo-sem-Pavor a correr-lhe nas veias, que
assistiu às façanhas e às hesitações do Condestável, e que fez parte da
insurreição do Manuelinho, sente naturalmente dentro de si o irreprimível
orgulho dum homem predestinado. A seus pés desdobra-se o extenso palco do seu
destino: a infindável planície a que dá vida e movimento. São os rios e os
ribeiros secos que faz transbordar de suor, os negros montados que alegra de
vez em quando pintando de vermelho cada sobreiro, a sua casinha escarolada e
erma com uma mimosa na botoeira, e as searas que ondulam e reverberam num aceno
de abundância. Um mundo livre, sem muros, que deixou passar todas as invasões e
permaneceu inviolado, alheio às mutações da história e fiel ao esforço que o
granjeia. Nenhum limite no espaço e no tempo. Seja qual for o ponto cardial que
escolha a inquietação, terá sempre o infinito diante de si, em pousio para
qualquer sementeira. E essa eterna pureza e disponibilidade do solo exaltam o
ânimo do possuidor.
Sim,
pobre ganhão que seja, ele é um rei nos seus domínios. Não há outro português
mais rico de pão, agasalhado por tão quente manta de céu e dono de tantos
palmos de sepultura. Que minhoto ou estremenho se pode gabar de ver sempre o
vulto dum seu irmão, que não tem medo da imensidade, a abrir um risco de fogo e
de esperança com a ponta da charrua?
Miguel Torga
«Portugal». Coimbra, Ed. Autor, 1950; 4.ª ed. revista
1980.
3 comentários:
Um poema este texto.Não porque foi escrito por um poeta maior, mas porque enforma de um lirismo realista impressionante.Será que posso partilhar?
Caro Amigo, na escola este texto devia ser obrigatório assim como é nosso dever dar a conhecer esta pérola que nos valoriza e engrandece.
Obrigado pela visita. Amanha publicarei um texto de Almeida Faria também muito belo.
Que texto maravilhoso!Tão poético,mas sem florear a realidade do Alentejo.Obrigada!Abraço
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