terça-feira, 30 de agosto de 2016

Náufragos do Império - Domingos Lobo


Não se pode morar
nos olhos de um gato
,
de Ana Margarida de Carvalho
Após a estreia auspiciosa com o romance Que Importa a Fúria do Mar, (Prémio de Romance e Novela APE/DGLAB em 2013), Ana Margarida de Carvalho, investindo, de modo poderoso e inovador, nas questões fracturantes da nossa História comum, regressa com um texto de absoluto fascínio, ao qual nos rendemos, sobressaltados e incrédulos, da primeira à última página.
Em Não se pode morar nos olhos de um gato, título retirado de um poema de Alexandre O’Neill, a palavra, este português soberbo, a um tempo solar e cáustico, que andava arredio da nossa literatura desde Aquilino, Torga, Saramago, Maria Velho da Costa, que se passeia ufano, no Capítulo Primeiro, por Gil Vicente, é a protagonista principal deste romance que viaja pelo mais obscuro e silente da nossa condição em conjunções de abismo, de caverna, de esconjuros. Que percorre esse corpo escuso das palavras como se novas, retiradas do chão pela raiz, palavras que, dilaceradas como costas de escravos, transportam ressonâncias de búzio, fístulas, sal, a água pútrida dos porões dos navios negreiros, pus e sangue, um olho redondo, atento e desesperado de baleia, os medos e as marcas dos chicotes do tempo; as palavras que servem, no seu esplendor de abóbada gótica, uma missa negra, lírica e grotesca, a que preside, com o terror do silêncio e da ausência (Não são os deuses que dormem, nós é que os sonhamos, pág. 229), Nossa Senhora das Angústias, santa saída de tronco tosco, já pau carunchoso, careca de ver tanto mundo, ultrajes e naufrágios, nua como ao mundo vêm os homens; ritual de coro de açodados, escravos ou não dado que irmanados na mesma angústia, Nossa Senhora da dita nos valha, carregando os mesmos fantasmas, vinho áspero e azedo, difícil de tragar tal como a alcatra de cavalo, ou raia podre, tudo a fome abarca mesmo que a boca rebente de aftas e de larvas e as pernas se dilacerem no gume das pedras; náufragos expostos aos clamores do tempo, que vivem dias de estupor e de absurdo (E se já vão mortos porque temem o naufrágio, pág. 9), que perdem os andrajos e os modos, o colo que nunca tiveram, que se organizam para sobreviver frente ao mar imenso, numa praia exígua que só lhes deixa espaço respirável nas horas da vazante, atirados para uma gruta à má-fila como nos pesadelos, corpo em bolandas sob o olhar parado, perturbador, de uma santa já sem pernas, nem atavios conformes, mas com a madeira que lhe resta aguçada o bastante para levar de vencida o capataz, o mesmo que rasgava a pele dos escravos a vergastadas de ódio e de soberba, e tinha olhos de render as mulheres aos seus caprichos de macho. A morrer na praia, tão perto do paraíso possível. Coisas do Demo, de pesadelos nossos, que não dos sonhos.
Não se pode morar nos olhos de um gato, de Ana Margarida de Carvalho, é um romance invulgar, escrito numa língua que só a autora sabe reinventar deste modo fulgente, no regresso a um adjectivar barroco da melhor extracção simbólica e metafórica; língua que serve uma poética de sombras e de nudez, de cobiça e de sórdidos arroubos; que se detém nos olhos de um menino negro, deslumbrado com o mundo; que percorre com hábil sageza, atenta aos detalhes de poroso território, um parto que dura toda uma noite e todas as vagas da maré (o parto é um dos momentos mais altos deste apodíctico discurso), que expressa o fundo insensato das almas abismadas e da abjecção contumaz; que se levanta do cerco das redundâncias e age sobre o novo e se vê perplexa perante os prodígios da semântica.
Percorramos, em voo de pássaro, o conteúdo principal deste romance. Estamos em finais do século XIX, após a abolição total da escravatura (25 de Fevereiro de 1869). Um tumbeiro clandestino, navio dos mortos lhe chamavam, naufraga ao largo do Brasil. Um grupo de náufragos consegue chegar a uma praia onde era possível estar vivo em sucedâneos, em calhando sim, em calhando não, ao capricho das marés. Nesse espaço escasso irá conviver um grupo heterogéneo: um capataz, um escravo, um mísero criado/criada, um padre, um estudante, uma fidalga e sua filha, um menino preto. Credos, classes, tons de pele e diversos conhecimentos do mundo. Todos com os seus fantasmas a arreata, com os seus medos, seus lanhos abertos. Náufragos dos sonhos derradeiros do Império, sua lama, com seus alicerces de ódio a derribar numa confusa identidade. Todos com vidas desfeitas, presos a uma corda improvável que os há-de, ou não, resgatar ( E se já vão mortos porque temem o naufrágio?) e levar a outro chão, outro lugar em que seja possível recomeçar de novo. Mas recomeçar o quê, se já vão mortos ou, respirando ainda, levam acrescida uma carga de cadáveres, de pavores, tão pesada que os assombros da noite, os uivos do mar, porque o mar quando destrói é sempre à dentada, como os lobos pág. 234, ou os preconceitos (religiosos, de origem, de classe), a fome, as condições-limite da sobrevivência, os dias do medo, não ousaram esconjurar, mesmo quando À noite, embrulhados uns nos outros, todos se sentiram irmanados, por terem, novamente, o mesmo cheiro, pág. 238, que não a mesma pele, a mesma memória, as mesmas feridas.
Não basta enganar a morte a tratos de polé, é preciso chegar a novo porto enxuto, com todos os fantasmas ressurrectos enterrados em terra funda. Impossível jornada, improvável redenção. Eles, os náufragos, e nós que em terra firme sabemos dos sadismos monásticos, do cepo, das costas esquartejadas a golpes de chicote, Em tempos de atrocidade, todos estavam secos de perdão, pág. 301.
Ninguém sai inocente deste exercício de cruel memória, não se sai dele ileso. Osso duro de roer, este romance que desce ao cerne do humano que somos, que nos questiona, que nos olha de frente e nos acusa por andarmos tanto tempo distraídos, a morar nos olhos de um gato, sabendo que ao nosso lado o sórdido habita, a vergonha cresce, a usura estrangula na glote os gritos de revolta. Que não vencemos a morte e nos perdemos na vida a sonhar deuses que dormem num céu de crueldade e indiferença. Os remorsos destes náufragos de Ana Margarida de Carvalho, são os nossos remorsos, os nossos fantasmas, enquanto não soubermos ultrapassar os medos, os preconceitos, enquanto olharmos apenas para o espaço que nos permite a corda que nos prende o pé, os olhos de uma santa, ou os do gato da nossa solidão.
O agenciamento narrativo da autora vem precedido de um labor árduo sobre o corpo sintáctico das palavras, das suas recorrências, ardores, vertigens. São espelho de água, puro lastro, onde a língua cresce e se deslassa – mesmo quando diz dos medos, dos desassossegos, das nossas infrenes angústias.
Um grande livro, romance singular de uma autora que é preciso ler com vagar, sorvendo o que nos diz, o modo como diz e haurir esse verbo límpido, torrencial, essa gramática nova da língua portuguesa que afirma, estupefacta, que o sórdido existe mas que se abrem clareiras no tumulto, no coração das fontes.
“Não se pode morar nos olhos de um gato”
de Ana Margarida de Carvalho
Teorema/2016


1 comentário:

Olinda disse...

Um bom trabalho de Domingos Lobo.Já o tinha lido no Avante.Se a obra jã estava referenciada,ainda fiquei com mais apetite.Abraço