Não se pode morar
nos olhos de um gato,
de Ana Margarida de Carvalho
nos olhos de um gato,
de Ana Margarida de Carvalho
Após a estreia auspiciosa com o
romance Que Importa a Fúria do Mar, (Prémio de Romance e Novela
APE/DGLAB em 2013), Ana Margarida de Carvalho, investindo, de modo poderoso e
inovador, nas questões fracturantes da nossa História comum, regressa com um
texto de absoluto fascínio, ao qual nos rendemos, sobressaltados e incrédulos,
da primeira à última página.
Em Não se pode morar nos olhos de um gato, título
retirado de um poema de Alexandre O’Neill, a palavra, este português soberbo, a
um tempo solar e cáustico, que andava arredio da nossa literatura desde
Aquilino, Torga, Saramago, Maria Velho da Costa, que se passeia ufano, no Capítulo
Primeiro, por Gil Vicente, é a protagonista principal deste romance que
viaja pelo mais obscuro e silente da nossa condição em conjunções de abismo, de
caverna, de esconjuros. Que percorre esse corpo escuso das palavras como se
novas, retiradas do chão pela raiz, palavras que, dilaceradas como costas de
escravos, transportam ressonâncias de búzio, fístulas, sal, a água pútrida dos porões
dos navios negreiros, pus e sangue, um olho redondo, atento e desesperado de
baleia, os medos e as marcas dos chicotes do tempo; as palavras que servem, no
seu esplendor de abóbada gótica, uma missa negra, lírica e grotesca, a que
preside, com o terror do silêncio e da ausência (Não são os deuses que
dormem, nós é que os sonhamos, pág. 229), Nossa Senhora das Angústias,
santa saída de tronco tosco, já pau carunchoso, careca de ver tanto mundo,
ultrajes e naufrágios, nua como ao mundo vêm os homens; ritual de coro de
açodados, escravos ou não dado que irmanados na mesma angústia, Nossa Senhora
da dita nos valha, carregando os mesmos fantasmas, vinho áspero e azedo,
difícil de tragar tal como a alcatra de cavalo, ou raia podre, tudo a fome
abarca mesmo que a boca rebente de aftas e de larvas e as pernas se dilacerem
no gume das pedras; náufragos expostos aos clamores do tempo, que vivem dias de
estupor e de absurdo (E se já vão mortos porque temem o naufrágio, pág.
9), que perdem os andrajos e os modos, o colo que nunca tiveram, que se
organizam para sobreviver frente ao mar imenso, numa praia exígua que só lhes
deixa espaço respirável nas horas da vazante, atirados para uma gruta à má-fila
como nos pesadelos, corpo em bolandas sob o olhar parado, perturbador, de uma
santa já sem pernas, nem atavios conformes, mas com a madeira que lhe resta
aguçada o bastante para levar de vencida o capataz, o mesmo que rasgava a pele
dos escravos a vergastadas de ódio e de soberba, e tinha olhos de render as
mulheres aos seus caprichos de macho. A morrer na praia, tão perto do paraíso
possível. Coisas do Demo, de pesadelos nossos, que não dos sonhos.
Não se pode morar nos olhos de um gato, de Ana
Margarida de Carvalho, é um romance invulgar, escrito numa língua que só
a autora sabe reinventar deste modo fulgente, no regresso a um adjectivar
barroco da melhor extracção simbólica e metafórica; língua que serve uma
poética de sombras e de nudez, de cobiça e de sórdidos arroubos; que se detém
nos olhos de um menino negro, deslumbrado com o mundo; que percorre com hábil
sageza, atenta aos detalhes de poroso território, um parto que dura toda uma
noite e todas as vagas da maré (o parto é um dos momentos mais altos deste
apodíctico discurso), que expressa o fundo insensato das almas abismadas e da
abjecção contumaz; que se levanta do cerco das redundâncias e age sobre o novo
e se vê perplexa perante os prodígios da semântica.
Percorramos, em voo de pássaro, o conteúdo principal
deste romance. Estamos em finais do século XIX, após a abolição total da
escravatura (25 de Fevereiro de 1869). Um tumbeiro clandestino, navio dos
mortos lhe chamavam, naufraga ao largo do Brasil. Um grupo de náufragos
consegue chegar a uma praia onde era possível estar vivo em sucedâneos, em
calhando sim, em calhando não, ao capricho das marés. Nesse espaço escasso
irá conviver um grupo heterogéneo: um capataz, um escravo, um mísero
criado/criada, um padre, um estudante, uma fidalga e sua filha, um menino
preto. Credos, classes, tons de pele e diversos conhecimentos do mundo. Todos
com os seus fantasmas a arreata, com os seus medos, seus lanhos abertos.
Náufragos dos sonhos derradeiros do Império, sua lama, com seus alicerces de
ódio a derribar numa confusa identidade. Todos com vidas desfeitas, presos a
uma corda improvável que os há-de, ou não, resgatar ( E se já vão mortos
porque temem o naufrágio?) e levar a outro chão, outro lugar em que seja
possível recomeçar de novo. Mas recomeçar o quê, se já vão mortos ou,
respirando ainda, levam acrescida uma carga de cadáveres, de pavores, tão
pesada que os assombros da noite, os uivos do mar, porque o mar quando
destrói é sempre à dentada, como os lobos pág. 234, ou os preconceitos
(religiosos, de origem, de classe), a fome, as condições-limite da
sobrevivência, os dias do medo, não ousaram esconjurar, mesmo quando À
noite, embrulhados uns nos outros, todos se sentiram irmanados, por terem,
novamente, o mesmo cheiro, pág. 238, que não a mesma pele, a mesma memória,
as mesmas feridas.
Não basta enganar a morte a tratos de polé, é preciso
chegar a novo porto enxuto, com todos os fantasmas ressurrectos enterrados em
terra funda. Impossível jornada, improvável redenção. Eles, os náufragos, e nós
que em terra firme sabemos dos sadismos monásticos, do cepo, das costas
esquartejadas a golpes de chicote, Em tempos de atrocidade, todos estavam
secos de perdão, pág. 301.
Ninguém sai inocente deste exercício de cruel memória,
não se sai dele ileso. Osso duro de roer, este romance que desce ao cerne do
humano que somos, que nos questiona, que nos olha de frente e nos acusa por
andarmos tanto tempo distraídos, a morar nos olhos de um gato, sabendo
que ao nosso lado o sórdido habita, a vergonha cresce, a usura estrangula na
glote os gritos de revolta. Que não vencemos a morte e nos perdemos na vida a
sonhar deuses que dormem num céu de crueldade e indiferença. Os remorsos destes
náufragos de Ana Margarida de Carvalho, são os nossos remorsos, os nossos
fantasmas, enquanto não soubermos ultrapassar os medos, os preconceitos,
enquanto olharmos apenas para o espaço que nos permite a corda que nos prende o
pé, os olhos de uma santa, ou os do gato da nossa solidão.
O agenciamento narrativo da autora vem precedido de um
labor árduo sobre o corpo sintáctico das palavras, das suas recorrências,
ardores, vertigens. São espelho de água, puro lastro, onde a língua cresce e se
deslassa – mesmo quando diz dos medos, dos desassossegos, das nossas infrenes
angústias.
Um grande livro, romance singular de uma autora que é
preciso ler com vagar, sorvendo o que nos diz, o modo como diz e haurir esse
verbo límpido, torrencial, essa gramática nova da língua portuguesa que afirma,
estupefacta, que o sórdido existe mas que se abrem clareiras no tumulto,
no coração das fontes.
“Não se pode morar nos olhos de um
gato”
de Ana Margarida de Carvalho
de Ana Margarida de Carvalho
Teorema/2016
1 comentário:
Um bom trabalho de Domingos Lobo.Já o tinha lido no Avante.Se a obra jã estava referenciada,ainda fiquei com mais apetite.Abraço
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