sábado, 1 de outubro de 2016

Peniche e o abocanhar da História


A propósito da tentativa de privatizar o Forte de Peniche, recordei este texto publicado em vários jornais há 16 anos.


VOLTÁMOS, PAPÁ!

“Fantasmas invisíveis que atormentam
O sono leve dos que se alimentam
Da liberdade de qualquer irmão.”
Miguel Torga

Aos poucos estamos a recuperar os teus lugares de eleição. Sei que não gostas do termo. Eleição é um vocábulo amargo, sabe a votos e lembra os devotos da liberdade e também os militares de Abril.

Enfim, o que lá vai, lá vai!

Sabes papá: “A antiga sede da ex-PIDE/DGS vai ser transformada em habitação de luxo-caro.” Estás contente? Um escriba da nossa praça fez deste acontecimento uma crónica que não será lida. Ao contrário do que acontecia no teu tempo hoje há tanto papel à venda que as verdades diluem-se no lixo. São ignoradas não por defeito mas por excesso. Se te tivesses lembrado meu manholas manhoso!…

Mas, repara bem nas enormidades, nas calúnias deste escriba: “Devemos permitir que voltem ao local do crime, abrir-lhes as portas dessas habitações que se pretendem de luxo-caro, já que não é possível abrir-lhes sequer uma nesga de acesso ao remorso.

A alta finança, pilar do regime salazarento, sentir-se-á em casa, matando saudades dos que mataram. Não dos mortos, bem entendido, mas dos assassinos. É uma incursão ao passado, o regresso à origem, ao seu covil doirado.

O local mantém a tranquilidade sufocante de outros tempos, e os presumíveis hóspedes sentirão a envolvência do “pai tirano”, do velho, dos velhos tempos em que um simples telefonema acalmava os protestos nas fábricas, mesmo se os trabalhadores reclamassem simplesmente que o fruto do seu labor lhes mascarasse a fome.”

Papá, agora já não é necessário chamar a polícia, em 2010 o atual número de trabalhadores com contratos limitados vai duplicar em Portugal. A previsão foi revelada pelo primeiro estudo europeu sobre trabalho temporário apresentado em Bruxelas. Desculpa que te diga querido papá, mas nesta democracia que tanto temias atingem-se os mesmos objetivos de exploração, sem necessidade de recorrer aos “tabefes” que mandavas dar nos trabalhadores menos educados.

E as imposturas continuam:

“Os gritos causados pelas sevícias ainda hoje escorrem pela fachada dos edifícios, colando-lhes/nos as imagens de terror que perdura.

Apagar os vestígios de sangue, dos dentes cuspidos, dos rostos irreconhecíveis, dos corpos macerados e atirados para as enxovias depois de dias de estátua, colocando nos mesmos espaços móveis de coleção, ostentando sem pudor o fausto só possível sorvendo o suor alheio, confirma o triunfo da “democracia” neoliberal e a preocupação em apagar da história os seus naturais alicerces.

Sentir a ressonância de uma câmara de horrores, ouvir os urros que saltam diretamente dos pulmões, do estrondo choco do corpo jogado da janela para o pátio.

Vão, vão para lá, é esse o vosso lugar, símbolo da vossa arrogância da vossa insensibilidade frutos naturais do vosso poder: vão e aproveitem até à próxima partida. O tal “fim da história” que o cretino Fukuyama andou por ai a propalar e que tantos gostariam que assim fosse, só terá lugar se a vossa ganância destruir o planeta.

Os que propõem e aceitam tal projeto estão certos que lhes não vão faltar clientes. E os pretensos compradores desses apartamentos de luxo-caro sabem que se trata de um regresso a casa, que irão viver no preciso local em que se cometiam as mais bárbaras sevícias. Matava-se sob o controlo atento de um tirano de “brandos costumes”, torturavam-se homens e mulheres cuja coragem nos transmitia esperança e nos fazia acreditar no futuro, que já esteve mais perto mas pelo qual continuamos a lutar.

Recear acordar com os gritos dos torturados que as paredes daquele covil encerram ou ter as alucinações dos supliciados à estátua? É para o lado em que dormem melhor.”

Só mentiras papá. Que deus te guarde muito bem guardado.

- E algemado se possível.

1 comentário:

Olinda disse...

E andam por aí tantos filhos do papá...Gostei do texto.Abraço