Um artigo correto
Jornal SOL
4 de setembro 2017
Festa do
Avante!. Desta janela vê-se o mundo
A cada ano que passa, a Festa do
Avante! cresce e atrai mais gente. Mesmo quando o palco principal tem a
capacidade de juntar multidão compacta, ainda há gente suficiente para que tudo
pareça cheio no resto do recinto.
Em que outro lugar do mundo se pode
comer uma patanisca a ouvir dois representantes das Forças Armadas Revolucionárias
da Colômbia (FARC) a explicar o processo de paz colombiano? Ou se pode
conversar com um representante do Partido do Povo do Irão (Tudeh), ilegal,
clandestino, entusiasmado sobre as possibilidades de um dia outra revolução
chegar ao Irão? Ou ter um representante das Edições Avante a confessar estar à
espera de ser rendido para ir comer um ensopado de borrego?
Quando o jornal Avante! garante que
“não há festa como esta”, o slogan impõe-se a cada momento nesta festa popular
babélica que vai crescendo a cada ano que passa, naquela que muitos dizem ser a
margem certa do Tejo, a esquerda. A Quinta da Atalaia, freguesia da Amora,
concelho do Seixal, transforma-se, três dias por ano, num mundo de
solidariedade nacional e internacional, ou, na definição do deputado Miguel
Tiago, numa “janela para a forma como vemos o mundo”. E a “forma como vemos”, é
a forma como o PCP vê o mundo, mas “qualquer um pode espreitar essa janela”.
Isso sim, a partir do momento em que se entra no recinto (ou até mesmo nas proximidades),
toda a gente passa a ser camarada: “a” camarada, “o” camarada ou o jovem
camarada para os mais pequenos, talvez porque criança-camarada soava meio
estranho.
Aliás, quanto mais melhores. Na nova
entrada criada este ano, a da Quinta do Cabo, o Pavilhão Central está logo ali
para cativar os presentes com uma exposição sobre os 100 anos da Revolução de
Outubro na Rússia, uma loja de recordações que vende desde tapetes para rato
até t-shirts com os desenhos estampados de Álvaro Cunhal, DVD de Ary dos Santos
ou CD com a “Carvalhesa” – essa melodia tão viciante que mesmo quando não a
ouvimos em lado nenhum, passa o tempo a soar na nossa cabeça.
Dizíamos, no Espaço, que também
lembra as autárquicas que se aproximam (e o papel fundamental que a CDU tem
mantido no poder autárquico) e promove debates (é impressionante a militância
de quem consegue falar com entusiasmo sobre uma empresa municipal criada em
Évora com o sol inclemente das três da tarde a queimar-lhe a cabeça), aí não
falta o espaço para a adesão de novos militantes. E figuras importantes do
partido (deputados, dirigentes) passam regularmente por ali para servirem de
ímanes à militância. Por falar em ímanes, na loja de recordações vendem-se com
as imagens dos cartazes da Festa do Avante! ao longo dos tempos – e são muitos,
esta é já a 41ª edição.
Nostalgia e
pontes para o futuro
O histórico deputado António Filipe,
que encontramos no espaço de captação de novos militantes, fala de uma festa
com “forte presença da CDU e das suas candidaturas, mas que transcende em muito
as fronteiras do PCP”. É uma “festa muito alargada a outras tendências”, de
acordo com Miguel Tiago. No geral, é um espaço que acolhe até gente que não
partilha dos mesmos ideais, na explicação de Tiago, porque é uma festa atrai
“cada vez mais gente”.
Política, música, teatro, desporto,
literatura, partilha de experiências, nostalgia e pontes para o futuro, a Festa
do Avante! tornou-se tão grande e abrangente que chega a ser cacofónica nas
ofertas. Parado em determinadas intersecções, chega a poder ouvir-se o som de
três palcos, mais a música das barracas de comes e bebes, a conversa das
pessoas e o cérebro entra em loop sem se conseguir concentrar num ponto.
O ideal é não parar ou parar somente
em sítios chave, onde só se consiga ouvir apenas uma coisa, ou pelo menos que o
som seja tão potente que impeça outros à volta de interferir. Outra
possibilidade (não recomendável aqui neste texto, que defende sempre a
moderação) é atirar-se aos óptimos Pisco Sour nos peruanos do espaço
internacional, numa barraca muito bem chamada de Macchu Pichu, pois ao fim do
terceiro Pisco há quem comece a sentir efeitos similares às náuseas da carência
de oxigénio sentidas por quem atinge Machu Picchu.
O espaço internacional pode até ser
sonoramente tão ou mais caótico que o restante da Quinta da Atalaia, sempre com
o Partido dos Comunistas da Catalunha à frente da intensidade da festa, com a
mistura das músicas que o palco da solidariedade debita e as que sobem do Café
Concerto, com o “Despacito” que os peruanos pouco revolucionários juntam e a
música com que os cubanos nos atraem.
Com Hindi e Serena, casal de
palestinianos a residir em Cascais há ano e meio, falamos de como é viver com
um país dentro (mesmo fora, mesmo longe, a Palestina continua a ser a sua maior
preocupação) e de um conflito que não tem mais fim. Ele optimista, sonha que
sim (a esperança é tramada, planta até no solo mais seco); ela, realista, diz
logo não à possibilidade de uma solução para o conflito israelo-palestiniano.
Hindi, o optimista, sabe, no
entanto, que “a ideia dos dois Estados está morta, a não ser que se retirem os
mais de meio milhão de colonos que Israel deixou instalar na Cisjordânia”.
Resta, como sonho, mesmo estando do outro lado um “inimigo poderoso, um Estado
militar”, a opção de “um Estado com direitos iguais” para judeus e árabes. Mas
“Israel não quer isso”, nem sequer dá os mesmos direitos e trata da mesma forma
os árabes-israelitas. “Em Israel vive-se em apartheid”, sublinha Hindi.
Estamos sentados no chão, Hindi
estendeu o seu keffiyeh (o lenço palestiniano) sobre a terra para que
estivéssemos ali à conversa. Não muito longe, a barraquinha da Palestina também
os vende, embora sem ser o item que mais atenções atrai. A vendedora
garante-nos que os presépios, as últimas ceias, os Cristos no Calvário se
vendem muito bem. Vêm da Terra Santa – Belém, a Igreja da Natividade, ficam em
território palestiniano.
Aliás, não é o único local na festa
onde se vendem imagens de Cristos, o artesanato de Braga, trazido pela
organização concelhia do PC, também as vende, e Santo Antónios e outros santos.
É também um reflexo “do carácter
popular” desta festa em que comungam várias gerações. Famílias inteiras, de
avós a netos, passando pelos pais, gente com mais de 80 anos e bebés de colo,
alguns de poucos meses. Caminhando lado a lado, dormindo a sesta à sombra das
árvores ou dos pavilhões, dividindo a primeira fila dos concertos. Na noite de
sábado, a fila da frente do concerto de António Zambujo revelava-se como
exemplo desse caleidoscópio de gente que tem nesta imensa festa popular
programa que lhe agrade.
A camada de
pó que democraticamente cobre todos os livros
O jazz pode soar no Auditório 1.º de
Maio, enquanto, poucos metros mais acima, um grupo coral se dedica à
interpretação do cante e pelo meio dos comes e bebes de Braga a Associação de
Zés Pereiras de Basto dedica-se aos bombos. E enquanto o rap anima o Palco 25
de Abril, há quem prefira levar os putos ao carrocel ou a tirar fotografias com
os Zés Pereira que volta e meia percorrem o recinto.
Aos militantes mais
intelectualizados oferece a Festa do Livro debates que podem girar à volta da
segunda edição do “Forte de Peniche – Memória, Resistência e Luta” (José Pedro
Soares anunciou que no próximo sábado, dia 9, se inaugura em Peniche um
monumento em homenagem aos presos políticos) ou sobre o livro de Bruno Drweski
“A Nova Rússia é ‘de direita’ ou ‘de esquerda’”.
Limpando a camada de pó que
democraticamente cobre todos os livros à venda, lê-se no livro de Drweski “a
história demonstrou que as revoluções nunca morrem realmente e fazem surgir
recorrentemente os seus efeitos” e a aí volta a soar o entusiasmo do velho
dirigente do Tudeh, capaz de manter o optimismo mesmo com partido ilegalizado e
perante o autoritarismo político-religioso do regime iraniano: “Quando se é
ilegal toda a gente pode ser membro do partido”.
Na Festa do Avante!, da senhora que
dorme a sesta à sombra de um pavilhão, tranquilamente deitada no chão como se
fosse a sua casa, até ao bebé a quem a mãe muda a fralda em algum dos espaços
criados no recinto, passando pelo jovem em coma alcoólico assistido e
transportado pelos bombeiros, pelos jovens que bebem cerveja e saltam a
levantar pó frente ao Partido dos Comunistas da Catalunha ou os que se
solidarizam com a luta revolucionária bolivariana na Venezuela, todos podem ser
ou não ser membros do Partido Comunista Português, porque, como diz António
Filipe, “todo o país vem à festa”.
E esse país heterogéneo que passa
pela Quinta da Atalaia todos os anos regressa a casa ao fim dos três dias,
empurrando o carrinho das crianças dormindo, ajudando a avó rua acima,
procurando a saliva que algum álcool a mais secou, com aquilo que Chico Buarque
escreveu e Zambujo cantou no sábado, a encerrar o seu concerto no Palco 25 de
Abril – a sua primeira vez no cenário principal da festa, depois de três
atuações no Auditório 1.º de Maio: “foi bonita a festa, pá, fiquei contente e
indo guardo, renitente, um velho cravo para mim”.
4 comentários:
Muito bom,atendendo ao jornal em si!Quem escreveu o artigo,pode não ser comunista,mas é com toda a certeza, um profissional honesto.Não peço mais que isso à classe!Abraço
Gostei do artigo, embora falhasse referência ao pavilhão da Ciência.
E a entrada da Quinta do Cabo já existia, e funcionou, no ano passado, 2016.
Se calhar já conhecem, mas vale sempre a pena ler... ou reler.
Miguel Esteves Cardoso e a Festa do Avante (artigo no Público de 29/05/2012)
http://oblogdopovo.blogs.sapo.pt/3654.html
"...As festas do Avante, por muito que custe aos anti-comunistas reconhecê-lo, são magníficas.
É espantoso ver o que se alcança com um bocadinho de colaboração. Não só no sentido verdadeiro, de trabalhar com os outros, como no nobre, que é trabalhar de graça..."
Muito bom artigo. Evidência isenção na sua avaliação. Vários quadros, do que qualquer visitante, comunista ou não, podem descrever e/ou assinar por baixo.
Enviar um comentário