Os artistas no porão
(Original AQUI)
« Os artistas encontram-se em
graves apuros. Estamos todos no mesmo barco? Até podemos estar, mas alguns vão
no porão, que inunda mais depressa. E não haverá botes salva-vidas para todos.
Onde é que já vimos esta história antes? Ainda por cima, sejamos honestos,
trata-se de Portugal.
Faço parte do clube que acha que a
ficção não é um refúgio. O meu entendimento é precisamente o contrário: A
realidade é que é o refúgio, porventura para aqueles que não possuem «nem um
grão de imaginação», nas palavras do poeta. Infelizmente a tendência dos
governos é para colocarem a cultura no final das suas prioridades, como se
gerir um país fosse um alinhamento destes telejornais de agora.
Em que tudo passa
à frente da cultura: o futebol, os fait-divers, as parvoíces pegadas… E depois,
lá na cauda do noticiário, aparece, um, não mais, um evento (medonha palavra)
cultural. Acontecem coisas, às vezes, muito extraordinárias, em termos
artísticos, no país e as pessoas não dão conta, nem reparam, porque o seu olhar
já foi sequestrado por qualquer trivialidade ou escândalo. E andam elas em
síndroma de privação, numa ressaca nebulosa, sem sequer saberem do que padecem.
Porque o ser humano precisa desesperadamente do simbólico. Porque precisamos
aflitivamente de atravessar a ponte para o outro lado, que é o da ficção. E não
é porque a «humankind cannot bear very much reality», nesse verso de T S
Elliot, frase abundantemente profanada, que o bom do senhor nunca disse. Quem o
diz é um pássaro num desses longos, místicos e sombrios poemas de Elliot. Como
quando comentamos que, segundo Pessoa, «o melhor do mundo são as crianças»,
suspeitando que o poeta apenas quis arranjar rima para «danças». Ou que a
inveja é uma característica muito portuguesa porque vem no fim dos Lusíadas,
quando ele explicitamente se refere à glória de Aquiles, da Ilíada. Aquilo que
se diz, a realidade é a coisa mais imponderável do mundo, os factos são
dissolúveis, liquefeitos, como os relógios de Dali. A realidade, ao contrário
da ficção, não é de confiança. Quem imaginaria que a Europa poderia atravessar
uma crise pandémica desta magnitude? Quem suporia estas cidades fantasmas,
pessoas encurraladas em casa, ruas desertas? Cadáveres de velhos esquecidos em
lares? Quem poderia prever que a expressão isolamento social entrasse no nosso
léxico com tamanho à-vontade? Agora, instalado o pânico, é curioso que até
ministros apelem à leitura.
Fiquem em casa: Leiam, dizem eles. Enquanto durante
tantos executivos, a literatura foi sendo desprezada, menorizada, relegada,
ainda que tivéssemos um Camões (à altura de um Cervantes), um Pessoa (à altura
de nenhum outro), um Eça (à altura de um Machado de Assis), um prémio Nobel…
Nem um por cento do OE para a cultura no nosso país. Preferimos orientarmo-nos
todos, de repente, para a monocultura do turismo, e seus derivados, que todos
sabemos é actividade de enriquecimento rápido, mas volúvel, instável e
transitória… Estando a arte na base da cadeia alimentar dos desígnios
nacionais, sendo os artistas este fictoplânton em que os quiseram transformar,
estão totalmente vulneráveis às menores oscilações das bolsas, mercados,
terrorismos, e até vírus… Os artistas encontram-se em graves apuros. Estamos
todos no mesmo barco? Até podemos estar, mas alguns vão no porão, que inunda
mais depressa. E não haverá botes salva-vidas para todos. Onde é que já vimos
esta história antes? Ainda por cima, sejamos honestos, trata-se de Portugal.
Que, é sabido, nos dias de hoje, não tem uma preponderância política, nem na UE
nem no mundo, nem militar nem geoestratégica. Já tivemos alguns momentos
gloriosos na História. Já tivemos uma revolução exemplar.
Agora, com toda a
franqueza, o que o país tem de mais valioso para se orgulhar é a sua cultura.
Dispomos de artistas, escritores, arquitectos de excepção. E em vez de termos
solidificado a cultura, e investirmos em algo perene, sólido, e sustentado, que
se ergue uns centímetros acima de todo estas conjunturas que vão e vêm, destas
poeiras vãs, lanugens da história, que lhes passam por baixo com um enorme
alarde, condenámo-la à indigência.
O pior é ir no naufrágio e não termos onde
nos agarrar.»
1 comentário:
Enquanto não me deixarem partilhar estes textos vou sempre aqui deixá-lo escrito. De que é que os srs. do lápis azul virtual têm medo?
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