sábado, 2 de janeiro de 2021

Um livro ao domingo - O drama do povo palestiniano

 

A quem pertence a linha do horizonte é a pergunta de um povo inteiro na luta diária pela sua sobrevivência. Um povo digno que da «rima impossível do presente faz a rima possível e urgente». Um povo resistente que prossegue corajosamente e erguendo a sua bandeira palestina.

Entrevista (AQUI)

LAF – O livro é um grito acerca do drama do povo palestiniano. Que principais  emoções ou atitudes o moveram? Denúncia? Resistência? Combate? Solidariedade?

João Pedro Mésseder – Creio que tudo isso se entretece nestes vinte e sete poemas. Embora eles constituam sobretudo uma reacção humana, política, poética – ao longo dos anos tornada recorrente – ao que ia acontecendo na parte palestina de Jerusalém ocupada por Israel, ou na Cisjordânia, ou na Faixa de Gaza, ou nos campos de refugiados palestinos… Ontem um massacre, hoje não sei quantos adolescentes presos ou feridos; ontem uma manifestação palestina reprimida a tiro, hoje uma escola e um hospital pulverizados pelas bombas israelitas… Enfim, a morte servida dia após dia… Como é dito num dos poemas deste livro: «Gaza: / crescer pouco / e morrer.» (p. 36) ou, num outro, «pois instale-se / na Palestina ocupada / um contador / de mortes provocadas» (p. 28). Para mim, trata-se da impossibilidade de ignorar que isto acontece todos os dias. Não em Israel, mas nos territórios palestinos, seja nos ocupados seja nas zonas cercadas pelas forças militares israelitas, um dos mais poderosos e bem equipados exércitos do mundo. Escrevo também para que ninguém esqueça. Escrevo pela paz. E, embora a poesia disso não fale directamente, procuro intervir para que a ninguém falte a consciência de que este estado há muito actua à margem da legalidade internacional (violando todas as recomendações da ONU) e do respeito pelos direitos humanos.

LAF – O título, A quem pertence a linha do horizonte?, a propósito das restrições israelitas no acesso ao mar de Gaza, pretende ser um desafio acerca do condicionamento do destino, do sonho e da liberdade?

JPM – Sim, penso que pode ser lido dessa forma. A linha do horizonte que se vê da costa é quase sempre uma imagem de liberdade e de sonho. Em Gaza, porém, o horizonte não é palestino, embora devesse ser. A marinha e o exército de Israel não o permitem. Como tal, nem do seu mar os palestinos podem dispor. Logo, a liberdade de o explorarem, dele fazendo uma das bases da economia, está cerceada. Não é possível pescar para lá de um determinado número de milhas. Do mesmo modo que todos os dias a água e a luz são cortadas por Israel em Gaza. A linha do horizonte foi usurpada, neste território. Como se lê no poema «Pergunta» (p. 10), «a linha do horizonte / a quem pertence?».

LAF – Os poemas apresentam várias roupagens, inclusive glosando versos de Camões e da poesia popular. Foi uma forma de exprimir a multiplicidade de estados de alma perante um drama quotidiano e sem fim à vista?

JPM – Sim. Quando se está a escrever, muito do que lemos vem à mente. A intertextualidade é um elemento constitutivo, indissociável do próprio discurso literário. Ao pensar nos judeus abominavelmente, criminosamente perseguidos (designadamente pelo nazi-fascismo hitleriano e mussoliniano e, hoje em dia ainda, por grupos neo-nazis na Europa e nos EUA), ao pensar nesses que agora, em Israel, vêem os poderes por eles próprios eleitos perseguir outra gente, os palestinos (curiosamente semitas, tal como eles), é impossível para mim não pensar na estrutura dum certo verso de Camões: «Transforma-se o amador na cousa amada». Na Palestina, o perseguido parece ter-se transformado em perseguidor. Por outro lado, as mortes de crianças (em Julho de 2014, em Gaza, foram mais de quinhentas), ou aqueles miúdos baleados no decorrer da manifestação da Grande Marcha do Retorno ou todos os que se encontram encarcerados nas prisões israelitas trouxeram-me à memória a lengalenga popular do Tranglomango (que Cesariny também glosou num poema seu). E assim, recriando a sua estrutura, compus o poema «A bandeira» (p. 46), que constitui uma homenagem às crianças e jovens vítimas da violência, e à luta contra a ocupação, pela independência do estado palestino.

LAF – Os poemas foram escritos ao longo das últimas duas décadas. A razão do lançamento nesta altura relaciona-se com a iminente confirmação por Israel da anexação de parte da Cisjordânia ou foi mera coincidência?

JPM – Foi coincidência, embora o plano do governo israelita com a cobertura de Trump tenha vindo conferir uma dramática actualidade ao livro. Refiro-me, em primeiro lugar, à provocatória transferência da embaixada norte-americana para Jerusalém, e agora à anunciada anexação de partes da Cisjordânia, incluindo os blocos de colonatos ilegais, em mais uma violação flagrante do direito internacional. Em relação ao livro A Quem Pertence a Linha do Horizonte?, os poemas na verdade foram sendo escritos desde 2002. É terrível pensar que passaram dezoito anos desde o primeiro. Desejaria muito não continuar a escrevê-los nos dias de hoje. Significa que, neste momento, o drama do povo palestino continua sem solução e que a sementeira diária de mortos e de violência não conheceu ainda um termo. Porque a paz continua a ser um sonho dos palestinos e de muitos israelitas que contestam o belicismo e a actuação ilegal do seu governo. Tal como é aspiração da maioria dos portugueses, representados pela Assembleia da República, que o nosso governo reconheça o estado da Palestina, como foi recomendado, numa decisão maioritária, pelo parlamento.

LAF – As ilustrações apresentam uma forte presença do negro. A Ana Biscaia

procurou, assim, tornar mais explícita a densidade dramática dos poemas e da realidade palestiniana?

Ana Biscaia – O negro é de carvão, material que é fácil de manusear para desenhar. A linha do pau de carvão é uma linha claramente assumida – vê-se, tem espessura, contrasta com o branco do papel, que tem textura e torna o exercício do desenho numa experiência sensorial, pois o carvão a marcar o papel encontra atrito e uma leve resistência. Isso é audível quando desenho. Para mim, mais do que ilustrações, estas imagens são desenhos, e alguns deles (poucos) não são ancorados em nenhum poema, mas nas ideias que os atravessam.

O dramatismo de alguns desenhos tenta simbolizar o que sei e o que ouço e o que leio sobre a Palestina. Mais do que pensar no efeito de densidade dramática, pensei na urgência e na rapidez com que se pode fazer um desenho. No desenho como símbolo, no desenho como resposta ao poema escrito por João Pedro Mésseder. A realidade palestina, apesar de longínqua (a vários níveis) pode ser transmitida através do desenho, mas não creio que os desenhos sejam explícitos, nem explorem a realidade palestina. São, na minha opinião, mais simbólicos uns, mais expressivos outros, o da capa é claramente surrealizante, mas todos eles são muito gráficos.

LAF – Que questionamentos pretendeu lançar?

AB – Como se nasce com uma pedra na mão? Floresce nela a pedra? E como, como se semeia? Quais os objectos de resistência daquele povo? A quem pertence a linha do horizonte? O que é uma chave e para que serve? O que são colonatos? Porque se derrubam e matam oliveiras? Que leis protegem os algozes? NAKBA (que palavra é esta?). Porque é que aquele povo é tão forte? – questionamento pessoal. Como é possível uma injustiça tão grande?

Pensei, quando desenhei, no elogio daquele povo, nos seus símbolos, nas suas memórias, nas suas casas devoradas e nas chaves que guardam para si como objectos mágicos.

LAF – Já são várias as obras publicadas em conjunto com João Pedro Mésseder, algumas delas premiadas. Como nasceu e como caracteriza esta cumplicidade estética?

AB – A cumplicidade não é só estética, é sobretudo de outra ordem: tem raízes numa palavra preciosa. Somos amigos. E partilhamos ideias e valores de uma humanidade que ainda está por vir, que precisa ser ganha. Creio que esta identificação nos permitiu fazer juntos livros, como por exemplo o Que Luz Estarias a Ler? e outros. É esta cumplicidade, que vai para além dos livros, que nos permite ultrapassar a questão do livro por si só. Ou que nos permite contagiar o trabalho que fazemos com o lastro oriundo da amizade que sentimos. A contaminação é um corpo vivo. O sangue corre dentro das veias do mar e há vícios que são comuns, como por exemplo o vício de rio. (Julgo que posso falar pelos dois, quando escrevo estas palavras). Conhecemo-nos  em 2009, na Feira do Livro do Porto, onde apresentámos o livro Poesia de Luís de Camões para Todos – organizado e seleccionado por José António Gomes,  com ilustrações minhas.

 

 

1 comentário:

Olinda disse...

Tudo o que contribua para denunciar o fanatismo sionista,tem um alcance de solidariedade com o povo palestino.Tudo é pouco e é muito perante o terrorismo de israel,que só é comparável ao holocausto nazi.Vou comprar este livro.Abraço