terça-feira, 10 de agosto de 2021

A conta - Gustavo Carneiro

 

A conta

Volta e meia, a re­a­li­dade impõe que re­gres­semos a Al­meida Gar­rett e à questão que co­locou em me­ados do sé­culo XIX: «já cal­cu­laram o nú­mero de in­di­ví­duos que é for­çoso con­denar à mi­séria, ao tra­balho des­pro­por­ci­o­nado, à des­mo­ra­li­zação, à in­fâmia, à ig­no­rância cra­pu­losa, à des­graça in­ven­cível, à pe­núria ab­so­luta, para pro­duzir um rico?»

O autor de Vi­a­gens na Minha Terra não tinha (e di­fi­cil­mente po­deria ter, no Por­tugal de então) uma visão ci­en­tí­fica, mar­xista, do ca­pi­ta­lismo. Mo­viam-no so­bre­tudo fortes mo­ti­va­ções mo­rais. Con­tudo, ti­vesse ou não cons­ci­ência disso, aper­cebia-se já do que pas­sados mais de cem anos Ar­mindo Ro­dri­gues des­cre­veria como «um mundo de duas faces, de mi­séria e opu­lência».

Mas dei­xemos de lado o autor e cen­tremo-nos na questão por ele co­lo­cada, tão ac­tual por estes dias, quando se ficou a saber, por exemplo, que em 2020 os ac­ci­o­nistas do con­junto das mai­ores em­presas por­tu­guesas (Nos, Sonae, Brisa, Galp Energia, EDP, CTT, Je­ró­nimo Mar­tins e Cor­ti­ceira Amorim) re­ce­beram em di­vi­dendos qual­quer coisa como 7,4 mil mi­lhões de euros, mais 332 mi­lhões do que no ano an­te­rior. Im­por­tará ter pre­sente que muitos destes grupos be­ne­fi­ci­aram do re­gime de lay-off sim­pli­fi­cado e se pre­param para re­ceber «apoios ao in­ves­ti­mento» no âm­bito do PRR e da ba­zuca, ou vi­ta­mina, ou como quer que agora lhe chamem…

Do outro lado – e há sempre outro lado nestas coisas –, dados pu­bli­cados pelo INE apontam para que no mesmo ano de 2020 o de­sem­prego real tenha atin­gido os 14%, ou seja, 750 mil tra­ba­lha­dores. Até aquela que foi apre­sen­tada como uma boa no­tícia, o au­mento de 3% das re­mu­ne­ra­ções mé­dias dos tra­ba­lha­dores, es­conde a au­tên­tica tra­gédia que re­pre­sentou o de­sa­pa­re­ci­mento de mi­lhares de em­pregos exer­cidos por tra­ba­lha­dores com vín­culos frá­geis e sa­lá­rios bai­xís­simos. A es­ta­tís­tica tem destas coisas...

Já o Fundo Mo­ne­tário In­ter­na­ci­onal (sim, o da troika, que tanto fez para em­po­brecer a mai­oria de nós) diz-nos que em 2020 passou a haver mais 19 mil mi­li­o­ná­rios em Por­tugal, fi­xando-se em 136.430 o nú­mero de pes­soas a os­tentar este tí­tulo: note-se que o termo mi­li­o­nário de­signa, neste caso, al­guém com uma ri­queza ava­liada em pelo menos um mi­lhão de dó­lares, qual­quer coisa como 840 mil euros. Se entre eles a mai­oria tem entre um e cinco mi­lhões de dó­lares, há 72 in­di­ví­duos com for­tunas si­tu­adas al­gures entre os 100 e os 500 mi­lhões, e um su­pera mesmo este pa­tamar. Ao mesmo tempo, mais de 400 mil pes­soas caíram nesse mesmo ano abaixo do li­miar da po­breza: de­sem­pre­gados, uns, com ren­di­mentos di­mi­nuídos, ou­tros.

Quantos po­bres são pre­cisos para fazer um rico? É fazer a conta…

 

1 comentário:

Olinda disse...

Quantos jornalistas ou comentadores há neste país a denunciar estes escandalosos números?Contam-se pelos dedos das mãos,decerto.(Provavelmente uma bastará).Abraço