Sinais de alarme
Tinha seis anos quando comecei a ir sozinho para a escola.
Apanhava o (elétrico) 4 na Conchada e saía em Montes Claros. Na longa volta do
regresso a casa, entre Montes Claros e a Conchada (passando pela Baixa), o
4-Cruz-de-Celas passava numa parede que já não existe, onde uma pichagem
declarava em letras garrafais, enquadradas por uma cruz céltica mal-amanhada,
“Basta-nos! Fora com os comunistas”. Aos seis anos eu já sabia ler (sou letrado
da Cartilha Maternal). Compreendia o significado de “basta-nos” e de “fora com
os”, mas o vocábulo “comunistas” não era coisa que o João de Deus nos
ensinasse.
Numa cidade despida de anúncios e de cartazes, em que a literatura de caminho
se reduzia às tabuletas das lojas e das instituições por onde o 4 passava
(recordo com saudade as maiúsculas do Teatro Avenida), aquele “basta-nos! Fora
com os comunistas” tinha o significado de uma manchete no jornal do meu
percurso diário. Intrigava-me. Por aqueles dias, em resposta à minha dúvida, o
meu pai desvendaria o mistério, com as cautelas que o tempo fascista impunha, e
a explicação virou do avesso a minha natural benevolência para com uma frase
que não entendia. Os tais “comunistas” eram, afinal, o meu vizinho Santos
Ventosa, o Manuel Simões que era poeta, o Fernando António que se escondeu lá
em casa antes do “salto” para Argel, o Vítor Costa e a Nina, o Vilaça e a
Natércia, o Luís Carlos, a Cristina, o João Vilar do TEUC, o velho Gomes, o
Horácio Leitão, o Raul de Sousa, o Jorge Seabra, o Deniz-Jacinto – tudo gente
valorosa, trabalhadora, imerecedora de “bastas” e menos ainda de “foras”
naquela Coimbra dos anos de 1970. “Os comunistas” da pichagem eram, afinal, os
ativistas que eu conhecia do Ateneu de Coimbra, um lugar de democracia cultural
que me revelou o “Garoto de Charlot” e “Mel, Pastel e um Boneco de Papel”, o
espaço fraternal que abria as portas de um posto médico militante que anunciava
já um SNS para todos.
Vem esta falação a propósito dos trabalhos de reescrita da História, destinados
a equiparar o comunismo ao fascismo. Desde o Parlamento de uma Europa em
acelerada deriva de direita, ao insistente comentário televisivo, a tese é
apresentada como verdade absoluta.
Para isso apagam-se dos “ismos” os humanos que por elas responderam e
respondem, associando ao hábil procedimento palavras como “liberdade” ou
“democracia” destituídas, por sua vez, da essência emancipadora e da memória
histórica que as fez bandeira de luta e razão de entrega, às vezes da própria
vida. Se apenas nos cingíssemos ao espaço de Portugal, e ao setor das artes e
das ideias, “os comunistas” daquela pichagem chamavam-se Adriano Correia de
Oliveira, Álvaro Cunhal, Carlos Paredes, Lopes-Graça, Mário Sacramento, Pires
Jorge, Lousã Henriques – só para citar alguns daqueles que têm ligação a esta
Coimbra. Nomes que permitem, neste pequeno território, desmontar a acusação de
uma equivalência que, insultuosa, visa tão-só a absolvição do fascismo através
da desmemoriação. Venha, pois, quem aqui consiga debitar um par de nomes de
“equivalentes” fascistas portugueses que tenham, de algum modo, acrescentado
felicidade e luz à nossa existência coletiva. E, olhando mais longe, venha quem
consiga encontrar na História recente fascistas “equivalentes” a Pablo Picasso,
Paul Éluard, Vladimir Maiakovsky, Victor Jara, Oscar Niemeyer, os perseguidos
pelo Mackartismo nos EUA, Pasolini, Frida Khalo, Luigi Nono, Bertold Brecht.
A História não é isenta de controvérsia, e a discussão dos destinos dos
humanos, e os factos que lhes estão associados, não têm estado isentos de
violência. Por haver existências que não se comparam, uns analisam com cuidado
a História e tomam medidas para que os desastres não se repitam. Outros não – é
que a violência que nuns é mancha, noutros é essência. Quando o presidente da
“comunitária” Polónia de Auschwitz se curva perante a estátua do
colaboracionista nazi Stepan Bandera, quando a extrema-direita xenófoba e
neoliberal é promovida em dilatado tempo de antena, quando os lucros dos
poderosos crescem ao ritmo do empobrecimento desesperado dos desvalidos, os
sinais só podem ser de alarme. Porque na “equivalência” que se alardeia, ontem
como hoje, os sabotadores da Civilização são os cultores e os beneficiários do
lado da cruz gamada
2 comentários:
Um texto muito bom .Abraço
Magnífico texto!
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