10 de novembro de 1913 - 13 de Junho de 2005.
Álvaro Cunhal | por Jorge Amado
«Tão magro, de magreza impressionante, chupado a face fina e severa, as
mãos nervosas, dessas mãos que falam, mal penteado o cabelo, um homem jovem mas
fisicamente sofrido, homem de noites mal dormidas, de pouso incerto, de
responsabilidades imensas e de trabalho infatigável, eu o vejo, sentado ao
outro lado da mesa, diante de mim, falando com a sua voz um pouco rouca, os
olhos ardentes no fundo de um longo e sempre vencido cansaço, e o vejo agora
como há cinco anos passados, sua impressionante e inesquecível imagem: Álvaro
Cunhal, conhecido por Duarte, o revolucionário português. Falava sobre
Portugal, sobre que poderia falar?
Sua paixão e sua tarefa: libertar o povo português da humilhação
salazarista, libertar Portugal dessa já tão larga noite de desgraça, de
silêncios medrosos, de vozes comprimidas, de alastrada e permanente fome do
povo, de corvos clericais comendo o estômago do país, de tristes inquisidores
saídos dos cantos mal iluminados das sacristias e da História para oprimir o
povo e vendê-lo à velha cliente inglesa ou ao novo senhor norte-americano. Sua
paixão e sua tarefa: fazer de Portugal outra vez um país independente e do povo
português um povo novamente livre e farto e dono da sua natural alegria.
Ah! Aqueles cansados olhos fundos sorriam e a voz estrangulada de cólera se
abria em doçura de palavras de amor para falar de Portugal e do povo português.
Eu compreendia que aquele homem de magreza impressionante, de físico combalido
pela dura ilegalidade perseguida, era o seu próprio país, seu próprio povo e
que, com seu cansaço, sua fadiga de anos, sua rouca voz de velho sono, suas
mãos ossudas, eles estava construindo a vida, o dia de amanhã, o mundo novo a
nascer das ruínas fatais do salazarismo.
Como era terno seu sorriso ao falar das festas populares nas aldeias do
Minho ou dos homens rudes de Trás-os-Montes! Conhecia tudo do seu país e do seu
povo, tudo o que era autentico de Portugal, desde o mar-oceano com a sua
história portuguesa e gloriosa até as vinhas ao sol e as cantigas e os poemas
dos poetas reduzidos na sua grandeza pela censura fascista; desde as histórias heroicas
dos militantes presos, torturados até à loucura e à morte, as tenebrosas
histórias do Tarrafal, o campo de concentração mais antigo e mais cruel da
Europa, até às doces histórias de amor da província portuguesa, com um sabor
romântico das velhas legendas.
Contou-me coisas de espantar com sua voz ora doce, grávida de ternura, ora
violenta de cólera desatada quando falava da fome dos trabalhadores, da
opressão salazarista sobre o povo, da opressão imperialista sobre a sua pátria
de primavera e mar. (…) os comunistas portugueses, heróis anónimos do povo, os
invencíveis, os que estão rasgando a noite fascista com a lâmina de sua audácia
e de sua certeza para que novamente o sol da liberdade ilumine o país dos
pescadores e das uvas. De um me disse: «Esse esteve no Brasil e aprendeu com
vocês» (…) Falou do campo, dos homens que habitam as montanhas, daqueles que
Ferreira de Castro, o grande romancista, descreveu em «Terra Fria» e «A Lã e a
Neve». (…) Falou dos operários das cidades daqueles que Alves Redol descreveu
em seus magníficos romances e contou da sua irredutível resistência ao regime
salazarista. (…) Naquela tarde como que me apossei por inteiro de Portugal, do
melhor Portugal, do Portugal eterno, como se Álvaro Cunhal o trouxesse nas suas
mãos ossudas, tão descarnadas e nervosas, como se trouxesse – e o trazia em
verdade – no seu coração de revolucionário e patriota.
Voltei a vê-lo ainda uma vez, dias depois, e a longa conversa sobre
Portugal continuou. Falou-me dos escritores, dos plásticos, dos pescadores,
fadistas, e sobretudo da luta subterrânea, dura e difícil e jamais vencida. (…)
Veio o processo, dentro dos métodos infames dos tribunais fascistas. Ali se
ergueu Álvaro Cunhal (Militão morrera de torturas) e não era o réu, era o
acusador, a voz de fogo a queimar o vergonhoso rosto dos carrascos do seu povo,
dos vendilhões da sua pátria. (…) Pretendem matá-lo e nós sabemos que são frios
assassinos os que querem matá-lo. É uma vida preciosa, preciosa para Portugal e
para o mundo, ajudemos o povo português a salvá-la! (…) Há alguns meses eu
estava em frente ao mar Pacífico, na costa sul do Chile, em Isla Negra, em casa
de Pablo Neruda, meu
companheiro de lutas de esperança. Uma figura de proa de barco se elevava em
frente ao mar de ondas altas e violentas. Por isso falámos de Portugal e do seu
destino marítimo. Contei ao poeta sobre Cunhal e Pablo levantou-se, deixou-me
com o pescador que parara para escutar-nos e quando voltou havia escrito esse
maravilhoso poema que é «A Lâmpada Marinha»* sobre Portugal, seu povo, Álvaro
Cunhal e o dia luminoso de amanhã»
3 comentários:
Maravilhoso texto. Obrigada Cid Simões
Maravilhoso texto, não conhecia. Desconhecia, também como tinha surgido esse belo poema de Neruda " A Lâmpada Marinha". Abraço
Três Homens - vivos ou mortos - imprescindíveis.
Enviar um comentário