OS JESUÍTAS
“Espécie de bolos folhados com recheio, em forma de triângulo isósceles.”(de - O Pasteleiro e a Geometria)
Na fábrica, devido a um atraso na entrega de materiais, dispensaram-na mais cedo. O almoço havia sido magro. Estava cansada, não propriamente uma fatiga física; sentia-se abatida, prostrada, envolta numa preocupação que a apertava, um mal-estar indefinido.
Entrou num café, sentou-se e pediu uma bica para justificar a ocupação da mesa. Apetecia-lhe um bolo, mas preferia partilhar esse prazer logo que o filho chegasse da escola. Tinha que esperar ainda duas horas por ele e... tanto para fazer em casa!...
Deu por si a mexer o café e, só depois, se apercebeu que se esquecera de o açucarar. Como é costume dizer-se, “não estava lá.” Não!
Procurava encontrar solução para o resto da semana em que muito provavelmente não poderia ir esperar o filho à saída da escola, e também não o deixaria assim ao deus-dará!
Enquanto cismava, reparou numa travessa de jesuítas no balcão-vitrina, brilhantes, apetecíveis. Resistiu à tentação, havia prometido a si mesma esperar pelo filho.
Entretanto, ia tentando lembrar-se de alguém que a pudesse ajudar, mas sem resultado. O marido trabalhava longe, estava a prazo e procurava assegurar o emprego e também não tinha hora certa de saída.
Como ? Quem ?!
Invadia-a uma grande debilidade, sentiu-se desfalecer. Pensou que fosse fraqueza.
Voltou a olhar para os jesuítas. Porquê jesuítas? - procurava abstrair-se da sua principal preocupação jogando com as palavras – aos bolos poder-lhe-iam ter chamado “loiolas”, “hipócritas” ou “ardilosos”.
Mas a obsessão voltava cada vez com mais intensidade: o banco de horas, o filho e a impossibilidade de o acompanhar à escola e... os jesuítas; os bolos e os outros.
Na mesa ao lado uma senhora lamentava-se: O marido, motorista do senhor ministro, chegava a desoras a casa porque tinha que levar e esperar pelos meninos na discoteca.
Uma necessidade insuportável de respirar fundo e um aperto dorido no peito sufocava-a. Pediu um copo com água sem já ser ouvida; suores frios, sons distantes, um clarão e as trevas.
De imediato, todos se inquietaram com o episódio, ninguém no café deixou de manifestar a sua preocupação, dar os seus palpites, chamar o 112, obrigá-la a beber o inevitável copo de água, lamentar o sucedido.
Solícitos e de consciências tranquilas, cada qual levou para casa um episódio que relatou à sua maneira, fazendo jus, certamente, à sua participação no incidente.
Se a algumas das prestimosas criaturas, lhes tivessem dito que este era um dos muitos resultados do pacote laboral, ir-se-iam esgueirando comprometidas, sub-repticiamente, cobardemente porque não há ninguém que se não sinta culpada.
É muito mais cómodo chamar o 112 ou dar um copo de água, sobretudo a alguém que só tem sede de justiça.
2 comentários:
Vamos ter,todos,de deixar de assobiar para o lado.
Um abraço,
mário
Muito bonito o texto. Mas quem o sentirá dentro de si? Não são as pessoas que não olham para os outros. É a sociedade e a sua própria vida que as tornam duras.
Um nbeijo
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