«Não há nada isento de revoluções, e
alterações do mundo; tudo nele se muda, porque tudo se move; por isso a firmeza é violenta, ao mesmo tempo que a inconstância é natural.»
Matias Aires
A rotina aí está: enfadonha, amorfa, insípida. O que poderia ser um excelente pretexto para
manifestarmos os nossos profundos sentimentos de solidariedade actuante e permanente, não vai além da ladainha habitual,
despersonalizada, frouxa, sem alma. Boas-festinhas nha-nha-nhá, agora sem jerico mas com as receitas requentadas
nos bilhetes-postais do costume ou ainda a
blogosfera inundada de mensagens com bonequinhos
saltitantes e inexpressivos.
Este ano o meu bilhete de
boas-festas será ilustrado com um bispote. O vaso em questão, bacio, doutor ou penico, deixo o vocábulo ao vosso gosto, é o símbolo mais eloquente
da civilização e do momento histórico que estamos
vivendo.
Provocação; insensibilidade; mau gosto?
Provocação seria
enviar-vos as boas-festas sem esboçar um gesto de revolta face aos crimes que, neste preciso momento, estão a ser cometidos, ou cooperar na farsa dos que, para alijar a
conscienciazinha, deixam à saída do supermercado uns
baguitos de arroz e a alma aliviada.
Insensibilidade seria também não corar de vergonha ao assistir a
peditórios para “dar de comer a quem tem fome”. Fome, artimanha do destino, espécie de flagelo incontrolável, catástrofe natural ou crime contra o qual se esgrime com pipocas, coca-cola
e uns torrões de açúcar, sem que, por cobardia intelectual, física, social ou pela cómoda inércia que usa óculos fumados não coloca a questão: Porquê a fome?
Mau gosto seria ignorar ou achincalhar a clássica questão colocada por Almeida
Garrett: “quantos pobres são necessários para fazer um rico?”. Quando é sabido que um só homem, neste momento, possui uma
fortuna superior a mais de uma dezena de países do dito terceiro mundo, países onde morrem literalmente de fome milhões e milhões de crianças e, face a este genocídio, friamente organizado,
à porta dos supermercados, deixar-lhes
uns brinquedos, saquinhos
de rebuçados e algum dó, é mais cómodo do que gritar: assassinos! Ou ir para a rua alertar para o crime e dizer onde se
encontram os seus algozes.
Com o óbolo pio, seguem
reconfortadas as boas almas a tempo de não perder o fio às telenovelas que limitam as preocupações, o raciocínio e a inteligência, no casulo morno do doce lar. Se a fome algum dia lhes bater à porta… logo se verá.
E estes jones de meia-tigela tão-pouco
se apercebem que a esmola oprime,
despersonaliza e ofende quem a recebe,
deixando no “benfeitor” o rasto pastoso de gestos a esconder.
Provocação ainda seria desejar
boas-festas, a seco, a todos os
desempregados, às famílias que passam fome, aos que são obrigados a emigrar e a todo um povo deste país que tem criminosos no poder.
“O mundo está uma arrastadeira, um caneco onde me recuso viver de braços caídos. Prometo-te
amigo, cidadão, camarada que lutarei até ao limite das minhas forças pela conquista da dignidade usurpada, pela justiça
escarnecida, onde o ser humano seja o sujeito das nossas preocupações, o objecto
e o objectivo das nossas vidas, para que um dia possamos trocar as
boas-festas sem o terror da incerteza a esmagar os nossos sonhos.”
4 comentários:
Extraordinário texto. Em total acordo com ele.
Um beijo.
Belo,belo.
Lá estarei,é a teu lado que quero caminhar,com todos os amigos.
Abração,
mário
Post scriptum:
Hoje,mais liberto das obrigações cooperativas,pude deixar um comentariozeca.
Mas,mesmo sem tempo para comentários,passo todos os dias,é já viciante.
Palavrinhas doces e postaizinhos continuam a impingir-nos a ideia de que o Natal é uma época de Paz, amor e solidariedade, quando esses sentimentos deviam existir no Mundo inteiro, sempre e em todas as épocas. Eu quero um "NATAL" para todos e todos os dias.
Um abraço.
Bom texto para servir de partilha ao nosso outro natal. Sábias palavras que como como iguaria do nosso outro natal! Belo penico, pena que seja virtual, é que está-me mesmo a apetecer mijar!
Um abraço do nosso outro natal
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