(O Jardins das Delícias Terrenas,
Hieronymus Bosch)
ESTÉTICA DO COITO
Traduzido por Armando Pereira da Silva
“Preparemos o
leito que no meio dos seus lençóis esconda um arco-íris” Picasso
Felizmente,
o coito é esse território real e surrealista “... lugar no espírito a partir do
qual a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o
comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo deixam de ser percebidos
contraditoriamente...” (1) Cântico de carnes e almas num desplante de vida que
faz fluir os seus néctares sobre a face do quotidiano. Coreografia de fugas que
se electrizam para que estalemos como arco-íris insurrectos entre orgasmos. O
coito é revolucionário.
Das
muitas calamidades confabuladas contra o coito são de referir o empirismo e o
criticismo, o simplismo, o reducionismo, o facilitismo e o obscurantismo.
Ideologias de palas em olhos estranhos sobre a mesa das pulcritudes metafísicas
que acompanham voluntariosas o autoritarismo machista, o institucionalismo
cerimonioso, a frigidez burocrática, o medo culpígeno, o cientificismo
psicoprofilático, o obscurantismo iluminista e o regulamentarismo do usuário
feliz promovido pela moral burguesa de algumas “revoluções sexuais” da
auto-ajuda. Também o capitalismo destrói as forças produtivas do coito.
Contra
o coito actuam desígnios ideológicos intermináveis alimentados por uma certa
perversão enfebrecida que se
encarrapitou na história para tudo atraiçoar. Trata-se de uma lógica da
omissão e do negativismo empenhada em malversar, reprimir, desfalcar,
regulamentar, ocultar e vulgarizar. Lógica da omissão para escravizar instintos
e vidas. Lógica da barbárie que proporcionou dividendos monstruosos: um
imaginário histórico do coito alienado e alienante, ignorância, culpas, medo,
negação dos corpos, entumecimento brutal dos prazeres e uma multiplicação
descontrolada de patologias e obscenidades. Prostituição e escravatura
burguesa, a alienação coital conduz a um colhedoiro miserável que vitimou
sociedades inteiras. Colhedoiro que é a barbárie feita negócio.
Mas
o coito é uma missa de corpos presentes com liturgias não metafísicas que entre
marés e marulhadas incontroláveis propicia a ressurreição dos instintos mais
livres. Homilia de carnes, agulheiros, pêlos, pregas, suores, odores, águas,
sístoles e diástoles. Rito concreto dos desejos onde os corpos são hóstias
molhadas em eflúvios de prazeres. Festa religiosa com incensos abissais,
confissões cósmicas e evangelhos telúricos. Pedra filosofal com revelações
promissórias que orientam a vida durante os arquejos da liberdade coital, por
ventos e marés... contra ventos e marés. Todos os enigmas da natureza retouçam
no coito para se reactivarem à direita e à esquerda.
O
coito é psicossomático, nota-se, é um acto ampliador das realidades que contém.
Acto de natureza e cultura tecidas com os seus próprios paradigmas. O coito é
uma linguagem. No coito excitam-se os fundamentos humanos mais abertamente
revolucionários, as fusões e correspondências, as analogias e divergências
consubstanciais do jogo... do facto lúdico. O diferente integrado
dialeticamente para uma resolução estritamente necessária: a própria vida. É a
fala da liberdade numa das suas modalidades mais sedutoras.
O
coito é uma linguagem que lança chispas incendiárias sobre as fantasias e as
emoções. Serve para reunir mesmo o raivosamente dissociado, não com discursos
de “igualdade” demagógica, mas com diferenças animadas por um encontro de
linguagens particulares. Línguas vivas. União entre grupos de conjuros que cresce
segundo a proliferação de frases sempre novas. Linguagem de intensidade e fogo
novo. “Na vida só é digno de existir o que for capaz de arder” Arqueles Vela.
O
coito é um caldeiro de bruxas onde fervilham corpos e almas entre vocábulos de
linguagens novas. Arte de artifícios para um diálogo sem cânones em algazarra
permanente que nega tudo o que não provenha das suas magias próprias. Assim é,
ou deveria ser, apesar dos silêncios e das manipulações. Assim é, ou deveria
ser, contra as práticas atemorizantes ou retorcidas. Porque cada coito oferece
pontos de fuga sobre um horizonte carnal e imediato cheio de promessas. Sem
manuais populacionais, sem preconceitos inquisitivos, sem dogmas de convenções sentimentalistas,
sem chantagens nupciais, sem ditaduras de status, sem ignorância, sem
vigilância, sem sida...
Ninguém
pode fazer demonstrações definitivas sobre a identidade se não se puser ao
corrente dos coitos necessários em cada vida, se não afugentar incertezas,
sombras com fogo de coitos que são linguagens de olhos, ventres, exprimindo-se
como princípio afirmativo. Todo o coito oferece imagens espontâneas perante as
quais a razão reconhece outras forças que têm por incumbência reprimir as suas
faculdades. Mais cedo ou mais tarde todos sabemos que o coito é um estado de
realidade absoluta resultante da fusão de dois estados aparentemente
contraditórios. É o automatismo real do desejo ditado pela vida em cumplicidade
com esses controlos especiais da razão que não estão à margem dos prazeres
estéticos e até morais. O coito demonstra que na humanidade habitam certas
capacidades criadoras que podem ser reveladas mediante linguagens complexas que
habitam, apesar de reprimidas, bem à superfície do quotidiano.
Além
disso, o coito activa e renova o desejo, injeta energia no ser e modo de ser
humano porque é como a metáfora por excelência onde se verifica em síntese a
multiplicidade de formas realmente existentes no Universo e, ainda que pareça
às vezes caótico ou individualista, a sua inspiração e morfologia descobrem a
diversidade unificada no biológico, no psíquico, no social, no cultural... para
gerar formas de consciência e emoção, de sensação e emoção que na sua
dialéctica ganham enriquecimento, em profundidade e em extensão, graças às suas
possibilidades sempre mutáveis. A matéria em movimento.
Devido
ao princípio de unidade do diverso tornamos singular a diversidade de
experiências coitais. Incluindo os seus ritmos. Cenários, personagens e acções
de um relato fantástico que renova fetiches enquanto se renovam. Nas suas magnificências,
o rito coital faz emergir astúcias de sobrevivência para se pôr a salvo perante
o repertório de insatisfações, mercenarismos, proibições e reducionismos
desencadeados por todas as tácticas da alienação.
Tudo o que rodeia o
coito é material inflamável.
O
coito requer uma guerra de guerrilhas semióticas, não didática, não
panfletária, não ingénua. Pede o derrubamento dos poderes inquisitivos das
hierarquias morais, desde a ciência à subconsciência, desde o machismo ao
reprodutivismo, desde o púlpito ao palpite. O amor pelo coito é uma forma de
amor que mantém vivo o fervor dos instintos que transforma o logos. O seu papel
transformador e libertador supõe estratégias que nenhum regime paternalista é
capaz de enfrentar porque o teme. A sua melhor pedagogia está no uso imoderado
do estupefaciente chamado coito. Entre cúmplices.
Nem
só o contacto “coital” é genital. Para lá da física coital estão todas as
outras físicas anteriores e posteriores que se resolvem objectivamente em cada
uma das experiências eróticas. A garantia do mistério radica em que é um jogo
de vontades na busca e fusão licuadas na praxis dos seus símbolos e arrebatos
do desejo profundo pessoal ou histórico. As linguagens de coito distendem-se e
contraem em saltos e assaltos que não se abrasarão com discriminações. A chicotada
eléctrica do desejo insufla descargas fosforescentes no ser total dos chamados
ao coito.
Esta
espontaneidade própria do coito aprecia-se seguindo a aproximação repentina de
certos arrebatamentos convulsivos como a beleza de certa chispa incendiária
despótica e ansiada. É um instante que provém de certa mística concreta e
dependente da sorte, fulgor interior que escreve as fábulas místicas dos
instintos entre moralidades épicas de prazer dialéctico. O coito não é um fim,
mas um meio; um meio para fixar a luz interior num lugar onde não seja possível
que um certo racionalismo utilitário imponha a sua lógica absurda. O coito não
é um fim justamente porque na sua dialética os contrários conciliam-se
unicamente para se afirmarem numa unidade e totalidade compreensível e
constante. Para diante e para trás.
Qualquer
pretexto cria o contexto para as situações e intenções dos indivíduos como
resposta e proposta multi-emocionais. A génese de cada coito é fraturada ludicamente
e repertório de intensidades que os sujeitos põem em jogo. Alguém abre um nicho
que outro enche com uma nova abertura. Cara a cara. Então em qualquer momento,
mais ou menos imprevisível, sobrevém a dança dos horizontes encarrapitados
entre montanhas de mares inversos. Gira a roleta branda, tíbia e húmida dos
orgasmos.
Qualquer
coito comporta-se como enxame eléctrico nas trevas ou à luz do sol, tem raízes
de abismo, de tremor de terra e cataclismo. Vive como um rio de luz entre mãos
e lábios com fulgurante persistência cheia de palavras impronunciadas
silenciosamente, mas erguidas como monumento extremo. Todo o coito é enxame
eléctrico desfolhado em esperas atónitas e catástrofes de olvidos. Ás vezes o
coito tem um aspecto severo, e no entanto suave, com uma intensidade de mutação
e de ruptura ligada à indiferença. Mas ninguém pode entregar-se à imobilidade
por qualquer causa. Trata-se de uma força contraditória que nos seus horizontes
dá a sensação de uma certa veemência do movimento. O coito é também uma
penetração lírica e teorética intimamente conectada com as forças mais ignotas
da criatividade e com a necessidade de reordenar mundos interiores e exteriores
maravilhosos graças a uma investigação metódica que permite compreender a
impossibilidade de trair a vida. Por isso procura o amor.
Corpos
com vocação de corpos balbuciam os arrebatamentos, arremetidas e palpitações
dos genitais representantes plenipotenciários das linguagens mais poderosas,
idênticas em cima e em baixo. São balizas intermitentes de águas coreógrafas
cujo tema recorrente é a procura. Nada se mantém quieto. Espécies em
intercâmbios de si com espasmos rítmicos da vida que se torna chicotada eléctrica
nos quadris. Dá-se urgência aos enigmas primordiais, para que outros novos
possam chegar. Coros de esfíncteres sempre aferrados ao sopro dos instantes
inéditos. Vulvas, falos, olhares, tacteios, líquidos exacerbados em panal de
turbulências que fazem de tudo. Está-se disposto a explodir em milhares de
partículas. Nada se mantém quieto, dentro e fora rajadas de alento sexual
alvoroçam os pêlos das vulvas e as vergas molhadas. Sentem que é a vida rameira
a falar. Tudo cresce no meio de tanto estremecimento definitivo sobre a pele de
cada milímetro e vice-versa. Recomenda-se o seu uso com frequência.
Cada
músculo, veia, pêlo, gota, odor... resvalam, comprimem, expandem, incham o seu
tudo e nada num vaivém de transatlânticos siderais até atingirem um ponto de
naufrágio divertido entre línguas de fogo que lambem o ar dos arquejos telúricos.
Tudo é cúmplice das almas invocadas e das paixões desbocadas. Cabem todas as
leis decretadas na dança dos corpos que se submergem mutuamente nas cavernas
alteradas de cada qual. É diálogo de vidas que contam maravilhas entre si para
que se incendeie de uma vez por todas tudo aquilo que nos deverá manter vivos.
Exaltam-se chegadas de cardumes imensos a praias com sóis e luas simultâneos.
Nada fica no seu lugar. O coito é portátil. Rompe as meninges do microcosmos
com relâmpagos de alma exaltada que trepa ao topo de todas as cordilheiras
emocionais de onde se atira ao vazio cheio de sentidos.
Quem atenta contra o coito atenta
contra o universo
Há
uma ciência do coito, tatuada nos ensaios das suas linguagens e símbolos, que
se repete muitas vezes graças à sensação beatífica do orgasmo e à sua
necessidade de criar uma ordem simbólica do coito a renovar-se constantemente
enquanto os fulgores da vida se sentem urgidos de interioridade e saltos
qualitativos. Essa ciência coital não se limita a estabelecer relações entre
“horizontais” segundo cânones estereotipados, mas inclui “verticais” num mesmo
ritmo de correspondências não indiferentes à realidade dos animais e das
plantas, por exemplo... São correspondências que provêm da unidade indissolúvel
do universo. Assim, o coito faz brotar de uma consciência infinitamente
sensível uma justificação objectiva, desde a carne até às emoções, baseada nas
correspondências concretas dos corpos que se pressionam ritmicamente com a
fórmula do princípio de identificação necessária.
Ninguém
se afunda no mesmo coito duas vezes. Daí essa luz fosforescente que delata quem
ressuscita assiduamente do coito. Daí tanta liberdade de códigos secretos e tanto
brilho emergente de até às fantasias mais criadoras e renovadoras. Felizmente o
coito tem a sua própria multimodal estratégia clandestina, com os seus
apóstolos e paroquianos, para descobrir sempre a própria vida, a sua qualidade
e dignidade. Pelo passado, pelo presente e pelo futuro. Felizmente coito és e ao
coito voltarás e se tudo correr bem o coito encontrará nas ancas o que os
pássaros procuram no ar.
(1)
A.
Breton. “Tudo leva a crer que existe um certo lugar no espírito a partir do
qual a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o
comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo deixam de ser percebidos
contraditoriamente. Seria inútil que a actividade surrealista procurasse outro
móbil que não a esperança de determinação deste ponto.” “Tudo leva a crer que existe um lugar
do espírito de onde a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o
futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo deixam de ser
percebidos contraditoriamente. Logo, seria em vão que a actividade surrealista
procurasse um outro móbil que não a esperança de determinação desse lugar”.
1 comentário:
Ora aqui está uma demonstração clara de que As palavras são armas.
João Pedro
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