segunda-feira, 21 de novembro de 2016

ESTÉTICA DO COITO - Fernando Bueno Abad Dominguez


(O Jardins das Delícias Terrenas, Hieronymus Bosch)
 
ESTÉTICA DO COITO



Preparemos o leito que no meio dos seus lençóis esconda um arco-íris”   Picasso

Felizmente, o coito é esse território real e surrealista “... lugar no espírito a partir do qual a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo deixam de ser percebidos contraditoriamente...” (1) Cântico de carnes e almas num desplante de vida que faz fluir os seus néctares sobre a face do quotidiano. Coreografia de fugas que se electrizam para que estalemos como arco-íris insurrectos entre orgasmos. O coito é revolucionário.

Das muitas calamidades confabuladas contra o coito são de referir o empirismo e o criticismo, o simplismo, o reducionismo, o facilitismo e o obscurantismo. Ideologias de palas em olhos estranhos sobre a mesa das pulcritudes metafísicas que acompanham voluntariosas o autoritarismo machista, o institucionalismo cerimonioso, a frigidez burocrática, o medo culpígeno, o cientificismo psicoprofilático, o obscurantismo iluminista e o regulamentarismo do usuário feliz promovido pela moral burguesa de algumas “revoluções sexuais” da auto-ajuda. Também o capitalismo destrói as forças produtivas do coito.

Contra o coito actuam desígnios ideológicos intermináveis alimentados por uma certa perversão enfebrecida que se  encarrapitou na história para tudo atraiçoar. Trata-se de uma lógica da omissão e do negativismo empenhada em malversar, reprimir, desfalcar, regulamentar, ocultar e vulgarizar. Lógica da omissão para escravizar instintos e vidas. Lógica da barbárie que proporcionou dividendos monstruosos: um imaginário histórico do coito alienado e alienante, ignorância, culpas, medo, negação dos corpos, entumecimento brutal dos prazeres e uma multiplicação descontrolada de patologias e obscenidades. Prostituição e escravatura burguesa, a alienação coital conduz a um colhedoiro miserável que vitimou sociedades inteiras. Colhedoiro que é a barbárie feita negócio.

Mas o coito é uma missa de corpos presentes com liturgias não metafísicas que entre marés e marulhadas incontroláveis propicia a ressurreição dos instintos mais livres. Homilia de carnes, agulheiros, pêlos, pregas, suores, odores, águas, sístoles e diástoles. Rito concreto dos desejos onde os corpos são hóstias molhadas em eflúvios de prazeres. Festa religiosa com incensos abissais, confissões cósmicas e evangelhos telúricos. Pedra filosofal com revelações promissórias que orientam a vida durante os arquejos da liberdade coital, por ventos e marés... contra ventos e marés. Todos os enigmas da natureza retouçam no coito para se reactivarem à direita e à esquerda.

O coito é psicossomático, nota-se, é um acto ampliador das realidades que contém. Acto de natureza e cultura tecidas com os seus próprios paradigmas. O coito é uma linguagem. No coito excitam-se os fundamentos humanos mais abertamente revolucionários, as fusões e correspondências, as analogias e divergências consubstanciais do jogo... do facto lúdico. O diferente integrado dialeticamente para uma resolução estritamente necessária: a própria vida. É a fala da liberdade numa das suas modalidades mais sedutoras.

O coito é uma linguagem que lança chispas incendiárias sobre as fantasias e as emoções. Serve para reunir mesmo o raivosamente dissociado, não com discursos de “igualdade” demagógica, mas com diferenças animadas por um encontro de linguagens particulares. Línguas vivas. União entre grupos de conjuros que cresce segundo a proliferação de frases sempre novas. Linguagem de intensidade e fogo novo. “Na vida só é digno de existir o que for capaz de arder” Arqueles Vela.

O coito é um caldeiro de bruxas onde fervilham corpos e almas entre vocábulos de linguagens novas. Arte de artifícios para um diálogo sem cânones em algazarra permanente que nega tudo o que não provenha das suas magias próprias. Assim é, ou deveria ser, apesar dos silêncios e das manipulações. Assim é, ou deveria ser, contra as práticas atemorizantes ou retorcidas. Porque cada coito oferece pontos de fuga sobre um horizonte carnal e imediato cheio de promessas. Sem manuais populacionais, sem preconceitos inquisitivos, sem dogmas de convenções sentimentalistas, sem chantagens nupciais, sem ditaduras de status, sem ignorância, sem vigilância, sem sida...

Ninguém pode fazer demonstrações definitivas sobre a identidade se não se puser ao corrente dos coitos necessários em cada vida, se não afugentar incertezas, sombras com fogo de coitos que são linguagens de olhos, ventres, exprimindo-se como princípio afirmativo. Todo o coito oferece imagens espontâneas perante as quais a razão reconhece outras forças que têm por incumbência reprimir as suas faculdades. Mais cedo ou mais tarde todos sabemos que o coito é um estado de realidade absoluta resultante da fusão de dois estados aparentemente contraditórios. É o automatismo real do desejo ditado pela vida em cumplicidade com esses controlos especiais da razão que não estão à margem dos prazeres estéticos e até morais. O coito demonstra que na humanidade habitam certas capacidades criadoras que podem ser reveladas mediante linguagens complexas que habitam, apesar de reprimidas, bem à superfície do quotidiano.

Além disso, o coito activa e renova o desejo, injeta energia no ser e modo de ser humano porque é como a metáfora por excelência onde se verifica em síntese a multiplicidade de formas realmente existentes no Universo e, ainda que pareça às vezes caótico ou individualista, a sua inspiração e morfologia descobrem a diversidade unificada no biológico, no psíquico, no social, no cultural... para gerar formas de consciência e emoção, de sensação e emoção que na sua dialéctica ganham enriquecimento, em profundidade e em extensão, graças às suas possibilidades sempre mutáveis. A matéria em movimento.

Devido ao princípio de unidade do diverso tornamos singular a diversidade de experiências coitais. Incluindo os seus ritmos. Cenários, personagens e acções de um relato fantástico que renova fetiches enquanto se renovam. Nas suas magnificências, o rito coital faz emergir astúcias de sobrevivência para se pôr a salvo perante o repertório de insatisfações, mercenarismos, proibições e reducionismos desencadeados por todas as tácticas da alienação.

Tudo o que rodeia o coito é material inflamável.

O coito requer uma guerra de guerrilhas semióticas, não didática, não panfletária, não ingénua. Pede o derrubamento dos poderes inquisitivos das hierarquias morais, desde a ciência à subconsciência, desde o machismo ao reprodutivismo, desde o púlpito ao palpite. O amor pelo coito é uma forma de amor que mantém vivo o fervor dos instintos que transforma o logos. O seu papel transformador e libertador supõe estratégias que nenhum regime paternalista é capaz de enfrentar porque o teme. A sua melhor pedagogia está no uso imoderado do estupefaciente chamado coito. Entre cúmplices.

Nem só o contacto “coital” é genital. Para lá da física coital estão todas as outras físicas anteriores e posteriores que se resolvem objectivamente em cada uma das experiências eróticas. A garantia do mistério radica em que é um jogo de vontades na busca e fusão licuadas na praxis dos seus símbolos e arrebatos do desejo profundo pessoal ou histórico. As linguagens de coito distendem-se e contraem em saltos e assaltos que não se abrasarão com discriminações. A chicotada eléctrica do desejo insufla descargas fosforescentes no ser total dos chamados ao coito.

Esta espontaneidade própria do coito aprecia-se seguindo a aproximação repentina de certos arrebatamentos convulsivos como a beleza de certa chispa incendiária despótica e ansiada. É um instante que provém de certa mística concreta e dependente da sorte, fulgor interior que escreve as fábulas místicas dos instintos entre moralidades épicas de prazer dialéctico. O coito não é um fim, mas um meio; um meio para fixar a luz interior num lugar onde não seja possível que um certo racionalismo utilitário imponha a sua lógica absurda. O coito não é um fim justamente porque na sua dialética os contrários conciliam-se unicamente para se afirmarem numa unidade e totalidade compreensível e constante. Para diante e para trás.

Qualquer pretexto cria o contexto para as situações e intenções dos indivíduos como resposta e proposta multi-emocionais. A génese de cada coito é fraturada ludicamente e repertório de intensidades que os sujeitos põem em jogo. Alguém abre um nicho que outro enche com uma nova abertura. Cara a cara. Então em qualquer momento, mais ou menos imprevisível, sobrevém a dança dos horizontes encarrapitados entre montanhas de mares inversos. Gira a roleta branda, tíbia e húmida dos orgasmos.

Qualquer coito comporta-se como enxame eléctrico nas trevas ou à luz do sol, tem raízes de abismo, de tremor de terra e cataclismo. Vive como um rio de luz entre mãos e lábios com fulgurante persistência cheia de palavras impronunciadas silenciosamente, mas erguidas como monumento extremo. Todo o coito é enxame eléctrico desfolhado em esperas atónitas e catástrofes de olvidos. Ás vezes o coito tem um aspecto severo, e no entanto suave, com uma intensidade de mutação e de ruptura ligada à indiferença. Mas ninguém pode entregar-se à imobilidade por qualquer causa. Trata-se de uma força contraditória que nos seus horizontes dá a sensação de uma certa veemência do movimento. O coito é também uma penetração lírica e teorética intimamente conectada com as forças mais ignotas da criatividade e com a necessidade de reordenar mundos interiores e exteriores maravilhosos graças a uma investigação metódica que permite compreender a impossibilidade de trair a vida. Por isso procura o amor.

Corpos com vocação de corpos balbuciam os arrebatamentos, arremetidas e palpitações dos genitais representantes plenipotenciários das linguagens mais poderosas, idênticas em cima e em baixo. São balizas intermitentes de águas coreógrafas cujo tema recorrente é a procura. Nada se mantém quieto. Espécies em intercâmbios de si com espasmos rítmicos da vida que se torna chicotada eléctrica nos quadris. Dá-se urgência aos enigmas primordiais, para que outros novos possam chegar. Coros de esfíncteres sempre aferrados ao sopro dos instantes inéditos. Vulvas, falos, olhares, tacteios, líquidos exacerbados em panal de turbulências que fazem de tudo. Está-se disposto a explodir em milhares de partículas. Nada se mantém quieto, dentro e fora rajadas de alento sexual alvoroçam os pêlos das vulvas e as vergas molhadas. Sentem que é a vida rameira a falar. Tudo cresce no meio de tanto estremecimento definitivo sobre a pele de cada milímetro e vice-versa. Recomenda-se o seu uso com frequência.

Cada músculo, veia, pêlo, gota, odor... resvalam, comprimem, expandem, incham o seu tudo e nada num vaivém de transatlânticos siderais até atingirem um ponto de naufrágio divertido entre línguas de fogo que lambem o ar dos arquejos telúricos. Tudo é cúmplice das almas invocadas e das paixões desbocadas. Cabem todas as leis decretadas na dança dos corpos que se submergem mutuamente nas cavernas alteradas de cada qual. É diálogo de vidas que contam maravilhas entre si para que se incendeie de uma vez por todas tudo aquilo que nos deverá manter vivos. Exaltam-se chegadas de cardumes imensos a praias com sóis e luas simultâneos. Nada fica no seu lugar. O coito é portátil. Rompe as meninges do microcosmos com relâmpagos de alma exaltada que trepa ao topo de todas as cordilheiras emocionais de onde se atira ao vazio cheio de sentidos.

Quem atenta contra o coito atenta contra o universo

Há uma ciência do coito, tatuada nos ensaios das suas linguagens e símbolos, que se repete muitas vezes graças à sensação beatífica do orgasmo e à sua necessidade de criar uma ordem simbólica do coito a renovar-se constantemente enquanto os fulgores da vida se sentem urgidos de interioridade e saltos qualitativos. Essa ciência coital não se limita a estabelecer relações entre “horizontais” segundo cânones estereotipados, mas inclui “verticais” num mesmo ritmo de correspondências não indiferentes à realidade dos animais e das plantas, por exemplo... São correspondências que provêm da unidade indissolúvel do universo. Assim, o coito faz brotar de uma consciência infinitamente sensível uma justificação objectiva, desde a carne até às emoções, baseada nas correspondências concretas dos corpos que se pressionam ritmicamente com a fórmula do princípio de identificação necessária.

Ninguém se afunda no mesmo coito duas vezes. Daí essa luz fosforescente que delata quem ressuscita assiduamente do coito. Daí tanta liberdade de códigos secretos e tanto brilho emergente de até às fantasias mais criadoras e renovadoras. Felizmente o coito tem a sua própria multimodal estratégia clandestina, com os seus apóstolos e paroquianos, para descobrir sempre a própria vida, a sua qualidade e dignidade. Pelo passado, pelo presente e pelo futuro. Felizmente coito és e ao coito voltarás e se tudo correr bem o coito encontrará nas ancas o que os pássaros procuram no ar.

(1) A. Breton. “Tudo leva a crer que existe um certo lugar no espírito a partir do qual a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo deixam de ser percebidos contraditoriamente. Seria inútil que a actividade surrealista procurasse outro móbil que não a esperança de determinação deste  ponto.” “Tudo leva a crer que existe um lugar do espírito de onde a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo deixam de ser percebidos contraditoriamente. Logo, seria em vão que a actividade surrealista procurasse um outro móbil que não a esperança de determinação desse lugar”.

1 comentário:

joão pedro disse...

Ora aqui está uma demonstração clara de que As palavras são armas.

João Pedro