A AURA TIÑOSA
Uma jovem italiana, confirmei; vivendo
em Londres, disseram-me; deitada de costas na mesa de recuperação, observa
através da estrutura vidrada do ginásio, uma ave imponente que se destacava nos
céus de Havana: A aura tiñosa.
Apercebi-me da “provocação” nas lágrimas
que lhe deslizavam pela face e se perdiam nos cabelos. A aura, além de evidenciar as nossas limitações, alertava-nos para as
humanas fragilidades, remetendo-nos ainda para a reflexão em nós tão pouco
frequente, principalmente quando tudo nos corre de feição.
Um acidente de aviação, avião particular
que se deslocava de Londres para Espanha onde ia assistir a uma festa - gente
abastada, obviamente - deixou-a presa a uma cadeira de rodas. E porque recursos
não lhe falta, de uma clínica em França transita para uma outra na Suíça onde
os meios técnico-científicos são, forçosamente, o que há de mais moderno, ou
não fosse terra de bancos ajoujados, em que o dinheiro sujo, ou melhor dizendo,
manchado se sangue, espalha o aparente bem-estar.
Nada lhe falta! e no entanto... a
tristeza, o desalento, o esboroar de sonhos em construção, transbordava pelo
rosto suave dessa jovem de vinte e um anos.
Na estéril, fria e daqui longínqua Suíça,
com todos os bens materiais que o mais exigente ser humano pode ambicionar, não
foi possível comprar um simples sorriso, nesse país de afectos esterilizados,
onde a alegria desde há muito repousa em frascos de formol.
Vi-a chegar: pálida, frágil como uma
pequena ave apanhada pela refrega. Observo-a: distante como que pelo absurdo a
paraplegia não lhe dissesse respeito; faz os movimentos de recuperação sem
interesse, mais: que os outros os façam por ela. O trauma está bem vivo. Na
acética, austera e formal Suíça, repetiram-lhe vezes sem conta: a sua vida vai
ser na cadeira de rodas, adapte-se, e, já agora, digo eu, não se esqueça de
deixar na caixa os mil e duzentos euros por dia.
Veio para Cuba. A Beatriz, profissional
competente e atenta tanto ao estado de saúde física como psíquica do paciente
que lhe foi indicado recuperar, vai cumprindo os exercícios que lhe deve
ministrar e, conversando naturalmente, como se estivesse, e estava fazendo o
que há demais natural, não retém a gargalhada oportuna, nem se inibe do dichote
ou da conversa brejeira com uma jovem de Porto Rico com patologia semelhante,
mas determinada.
O ambiente
é cordial e a música
cubana não deixa
ninguém indiferente,
envolvendo todos, mesmo
os de esperança adiada. A recuperação da jovem
italiana é lenta a todos
os níveis e, sendo embora
difícil extrair-lhe o esboço de um sorriso, timidamente o semblante
descontrai-se abrindo-lhe o caminho.
A “salsa” dá o ritmo a uma nova vida,
dos helvéticos fica a recordação do silêncio, de o tudo recheado de nada, das luzes reflectidas no aço inoxidável que
nos transportam para os filmes de ficção científica.
O sol entra pelas vidraças do ginásio e
acumulado que está no espírito desta gente, aquece o ambiente e os espíritos,
distribuindo alegria e alento, húmus onde cresce a esperança.
O dia de hoje é de festa: ela mexeu um dedo
de um dos pés! O pai, neurocirurgião, veio visitá-la; dez minutos, visita de
médico. Ninguém poderá determinar até onde irá a recuperação; entretanto a
confiança começa a ocupar o seu espaço para que a existência tenha sentido.
Observo-a de novo: de regresso ao
ginásio, ânimo revigorado, aflora o primeiro sorriso; na mesa dos exercícios
tenta esforçar-se; um negro gingão, fisioterapeuta também, acaba de chegar e
dá-lhe um beijo. A naturalidade e a fraternidade entrelaçam-se, não há doentes
nem sãos, pretos ou brancos, ricos ou pobres, há a participação técnica e
afectiva de todos no esforço comum para encontrar os caminhos da vida.
E já nesse caminho, vereda ainda,
ouve-se música, trabalha-se e, para os casos mais extremos ou para os que
requerem menos cuidados a atenção não difere.
Só a aura
tiñosa ensombra os céus de Cuba. Misto de ave de rapina e abutre, mantém-se
atenta á mais pequena falha ou a qualquer movimento descuidado da sua potencial
vítima. Além do mais os abutres não suportam a alegria dos povos, irrita-os a
cultura e o saber, componentes essenciais da liberdade.
O vizinho tinhoso não desarma, gasta
biliões de biliões em armamento sob o olhar perplexo de biliões de famintos e,
na frieza dos seus desígnios, acaba de vetar a proposta de 143 países para que
medicamentos essenciais à salvação de milhões de pessoas possam ser fabricados
e vendidos a preços mais baratos.
A evidência, luz que deveria esclarecer,
provavelmente encandeia obstruindo a realidade; para ser condescendente não
encontro outra explicação.
Mas... Por favor! Alguns de vós,
dispam-se de preconceitos e, com honestidade,
enfrentem-na: a sempre eterna realidade!
Cuba 2003
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