de
Mandado de despejo aos mandarins da
Europa! Fora.
Fora tu, Anatole France, Epicuro de farmacopeia
homeopática, tenia-Jaurès
do Ancien Régime,
salada de Renan-Flaubert em loiça do
século dezassete, falsificada!
Fora tu, Maurice Barrès,
feminista da Acção, Châteaubriand
de paredes nuas, alcoviteiro de palco da pátria de cartaz, bolor da Lorena, algibebe
dos mortos dos outros, vestindo do seu comércio!
Fora tu, Bouget das almas,
lamparineiro das partículas alheias, psicólogo de tampa de brasão, reles snob
plebeu, sublinhando a régua de lascas os mandamentos da lei da Igreja!
Fora tu, mercadoria Kipling, homem-prático
do verso, imperialista das sucatas, épico para Majuba e Colenso, Empire-Day
do calão das fardas, tramp-steamer
da baixa imortalidade!
Fora! Fora!
Fora tu, George Bernard Shaw,
vegeteriano do paradoxo, charlatão da sinceridade, tumor frio do ibsenismo,
arranjista da intelectualidade inesperada, Kilkenny-Cat de ti próprio,
Irish Melody
calvinista com letra da Origem das Espécies!
Fora tu, H. G. Wells, ideativo de
gesso, saca-rolhas de papelão para a garrafa da Complexidade!
Fora tu, G. K. Chesterton,
cristianismo para uso de prestidigitadores, barril de cerveja ao pé do altar,
adiposidade da dialéctica
cockney com o horror ao sabão influindo na limpeza dos raciocínios!
Fora tu, Yeats da céltica
bruma à roda de poste sem indicações, saco de podres
que veio à praia do naufrágio
do simbolismo inglês!
Fora ! Fora !
Fora tu, Rapagnetta-Annunzio,
banalidade em caracteres gregos, «D. Juan em Patmos» (solo
de trombone)!
E tu, Maeterlinck, fogão
do Mistério apagado!
E tu, Loti, sopa salgada, fria!
E finalmente
tu, Rostand-tand-tand-tand-tand-tand-tand-tand!
Fora! Fora! Fora!
E se houver outros que faltem,
procurem-nos aí para um canto!
Tirem isso tudo da minha frente!
Fora com isso tudo! Fora!
Aí! Que fazes tu na celebridade, Guilherme Segundo
da Alemanha, canhoto maneta do braço esquerdo, Bismarck sem tampa a
estorvar o lume?!
Quem és tu, tu da juba socialista, David Lloyd George,
bobo de barrete frígio feito de Union Jacks?!
E tu, qualquer outro, todos os
outros, açorda Briand-Dato-Boselli da incompetência ante os factos, todos os
estadistas pão-de-guerra que datam de muito antes da guerra! Todos! todos!
todos! Lixo, cisco, choldra provinciana, safardanagem intelectual!
E todos os chefes de estado,
incompetentes ao léu, barris de lixo virados pra baixo à porta da Insuficiência
da Época!
Tirem isso tudo da minha frente!
Arranjem feixes de palha e
ponham-nos a fingir gente que seja outra!
Tudo daqui para fora! Tudo daqui
para fora!
Ultimatum a eles todos, e a todos os
outros que sejam como eles todos!
Se não querem sair, fiquem e
lavem-se!
Falência geral de tudo por causa de
todos!
Falência geral de todos por causa de
tudo!
Falência dos povos e dos destinos —
falência total !
Desfile das nações para o meu
Desprezo!
Tu, ambição italiana, cão de colo chamado
César!
Tu, «esforço francês», galo depenado
com a pele pintada de penas! (Não lhe dêem muita corda senão parte-se!)
Tu organização britânica, com
Kitchener no fundo do mar desde o princípio da guerra!
(It's a
long, long way to Tipperary,
and a jolly sight longer way to Berlin !)
Tu, cultura alemã, Esparta podre com
azeite de cristianismo e vinagre de nietzschização, colmeia de lata,
transbordeamento imperialóide de servilismo engatado!
Tu, Áustria-súbdita, mistura de
sub-raças, batente de porta tipo K!
Tu, Von Bélgica, heróica à força,
limpa a mão à parede que foste!
Tu, escravatura russa, Europa de
malaios, libertação de mola desoprimida porque se partiu!
Tu, «imperialimo» espanhol, salero
em política, com toureiros de sambenito nas almas ao voltar da esquina e
qualidades guerreiras enterradas em Marrocos !
Tu, Estados Unidos da America,
síntese-bastardia da baixa-Europa, alho da açorda transatlântica, pronúncia
nasal do modernismo inestético!
E tu, Portugal-centavos, resto de
Monarquia a apodrecer República, extrema-unção-enxovalho da Desgraça,
colaboração artificial na guerra com vergonhas naturais em África!
E tu, Brasil «república irmã»,
blague de Pedro Álvares Cabral, que nem te queria descobrir!
Ponham-me um pano por cima de tudo
isso!
Fechem-me isso à chave e deitem a
chave fora!
Onde estão os antigos, as forças, os
homens, os guias, os guardas?
Vão aos cemitérios, que hoje são só
nomes nas lápides!
Agora a filosofia é o ter morrido Fouillée!
Agora a arte é o ter ficado Rodin!
Agora a literatura é Barrès
significar!
Agora a crítica é haver bestas que
não chamam besta ao Bourget!
Agora a política é a degeneração
gordurosa da organização da incompetência!
Agora a religião é o catolicismo
militante dos taberneiros da fé, o entusiasmo cozinha-franceza dos Maurras de
razão-descascada, é a espectaculite dos pragmatistas cristãos, dos
intuicionistas católicos, dos ritualistas nirvânicos, angariadores de anúncios
para Deus !
Agora é a guerra, jogo do empurra do
lado de cá e jogo de porta do lado de lá!
Sufoco de ter só isto à minha volta!
Deixem-me respirar!
Abram todas as janelas !
Abram mais janelas do que todas as
janelas que há no mundo!
Nenhuma ideia grande, ou noção
completa ou ambição imperial de imperador-nato!
Nenhuma ideia de uma estrutura,
nenhum senso do Edifício, nenhuma ânsia do Orgânico-Criado!
Nem um pequeno Pitt, nem um Goethe de
cartão, nem um Napoleão de Nürnberg!
Nem uma corrente literária que seja
sequer a sombra do romantismo ao meio-dia!
Nem um impulso militar que tenha
sequer o vago cheiro de um Austerlitz!
Nem uma corrente política que soe a
uma ideia-grão, chocalhando-a, ó Caios Grachos de tamborilar
na vidraça!
Época vil dos secundários, dos
aproximados, dos lacaios com aspirações de lacaios a reis-lacaios!
Lacaios que não sabeis ter a Aspiração,
burgueses do Desejo, transviados do balcão instintivo! Sim, todos vós que
representais a Europa, todos vós que sois políticos em evidência em todo o
mundo, que sois literatos meneurs de correntes europeias, que sois qualquer
coisa a qualquer coisa neste maelström
de chá-morno!
Homens-altos de Lilliput-Europa,
passai por baixo do meu Desprezo ! Passai vós, ambiciosos do luxo quotidiano,
anseios de costureiras dos dois sexos, vós cujo tipo é o plebeu Annunzio,
aristocrata de tanga de ouro!
Passai vós, que sois autores de
correntes artísticas, verso da medalha da impotência de criar!
Passai, frouxos que tendes a
necessidade de serdes os istas de qualquer ismo!
Passai, radicais do Pouco, incultos
do Avanço, que tendes a ignorância por coluna da audácia, que tendes a
impotência por esteio das neo-teorias!
Passai, gigantes de formigueiro,
ébrios da vossa personalidade de filhos de burguês, com a mania da grande-vida
roubada na dispensa paterna e a hereditariedade indesentranhada dos nervos!
Passai, mistos; passai, débeis que
só cantais a debilidade; passai, ultra-débeis que cantais só a força, burgueses
pasmados ante o atleta de feira que quereis criar na vossa indecisão febril !
Passai, esterco epileptóide sem
grandezas, histerialixo dos espectáculos, senilidade social do conceito
individual de juventude!
Passai, bolor do Novo, mercadoria em
mau estado desde o cérebro de origem!
Passai à esquerda do meu Desdém
virado à direita, criadores de «sistemas filosóficos», Boutroux, Bergsons, Euckens, hospitais para
religiosos incuráveis, pragmatistas do jornalismo metafísico, lazzaroni da
construção meditada!
Passai e não volteis, burgueses da
Europa-Total, párias da ambição do parecer-grandes, provincianos de Paris!
Passai, decigramas da Ambição,
grandes só numa época que conta a grandeza por centimiligramas!
Passai, provisórios, quotidianos,
artistas e políticos estilo lightning-lunch, servos empoleirados da Hora,
trintanários da Ocasião!
Passai, «finas sensibilidades» pela
falta de espinha dorsal; passai, construtores de café e conferência, monte de
tijolos com pretensões a casa!
Passai, cerebrais dos arrabaldes,
intensos de esquina-de-rua!
Inútil luxo, passai, vã grandeza ao
alcance de todos, megalomonia triunfante do aldeão de Europa-aldeia!
Vós que confundis o humano com o
popular, e o aristocrático com o fidalgo! Vós que confundis tudo, que, quando
não pensais nada, dizeis sempre outra coisa! Chocalhos, incompletos,
maravalhas, passai!
Passai, pretendentes a reis
parciais, lords de serradura, senhores feudais do Castelo de Papelão!
Passai, romantismo póstumo dos
liberalões de toda a parte, classicismo em álcool dos fetos de Racine, dinamismo dos Whitmans de degrau de
porta, dos pedintes da inspiração forçada, cabeças ocas que fazem barulho
porque vão bater com elas nas paredes!
Passai, cultores do hipnotismo em
casa, dominadores da vizinha do lado, caserneiros da Disciplina que não custa
nem cria !
Passai, tradicionalistas
auto-convencidos, anarquistas deveras sinceros, socialistas a invocar a sua
qualidade de trabalhadores para quererem deixar de trabalhar! Rotineiros da
revolução, passai!
Passai eugenistas, organizadores de
uma vida de lata, prussianos da biologia aplicada, neo-mendelianos da
incompreensão sociológica!
Passai, vegeterianos, teetotalers, calvinistas
dos outros, kill-joys do imperialismo de sobejo!
Passai, amanuenses do «vivre sa vie»
de botequim extremamente de esquina, ibsenóides Bernstein-Bataille do homem
forte de sala de palco!
Tango de pretos, fosses tu ao menos
minuete!
Passai, absolutamente, passai!
Vem tu finalmente ao meu Asco,
roça-se tu finalmente contra as solas do meu Desdém, grand finale dos parvos,
conflagração-escárneo, fogo em pequeno monte de estrume, síntese dinâmica do
estatismo ingénito da Época!
Roça-te tu e rojate, impotência a
fazer barulho!
Roça-te, canhões declamando a
incapacidade de mais ambição que balas, de mais inteligência que bombas!
Que esta é a equação-lama da infâmia
do cosmopolitismo de tiros:
BÉLGICA
GRÉCIA
Proclamem bem alto que ninguém
combate pela liberdade ou pelo Direito! Todos combatem por medo dos outros !
Não tem mais metros que estes milímetros a estatura das suas direcções!
Lixo guerreiro-palavroso! Esterco Joffre-Hindenburguesco!
Sentina europeia de Os Mesmos em excisão balofa!
Quem acredita neles?
Quem acredita nos outros?
Façam a barba aos poilus!
Descasquetem o rebanho inteiro!
Mandem isso tudo pra casa descascar
batatas simbólicas!
Lavem essa celha de mixórdia
inconsciente!
Atrelem uma locomotiva a essa
guerra!
Ponham uma coleira a isso e vão
exibi-lo para a Austrália!
Homens, nações, intuitos, está tudo
nulo!
Falência de tudo por causa de todos!
Falência de todos por causa de tudo! De um modo completo, de um modo total, de
um modo integral:
MERDA!
A Europa tem sede de que se crie,
tem fome de Futuro !
A Europa quer grandes Poetas, quer
grandes Estadistas, quer grandes Generais !
Quer o Político que construa
conscientemente os destinos inconscientes do seu povo !
Quer o Poeta que busque a
Imortalidade ardentemente, e não se importe com a fama, que é para as atrizes e
para os produtos farmacêuticos!
Quer o General que combata pelo
Triunfo Construtivo, não pela vitória em que apenas se derrotam os outros!
A Europa quer muito destes
Políticos, muitos destes Poetas, muitos destes Generais!
A Europa quer a Grande Ideia que
esteja por dentro destes Homens Fortes — a ideia que seja o Nome da sua riqueza
anónima!
A Europa quer a Inteligência Nova
que seja a Forma da sua Mateira caótica!
Quer a Vontade Nova que faça um
Edifício com as pedras-ao-acaso do que é hoje a Vida!
Quer a sensibilidade Nova que reúna
de dentro os egoísmos dos lacaios da Hora!
A Europa quer Donos! O Mundo quer a
Europa!
A Europa está farta de não existir
ainda! Está farta de ser apenas o arrabalde de si-própria ! A Era das Máquinas
procura, tateando, a vinda da Grande Humanidade!
A Europa anseia, ao menos, por
Teóricos de O-que-será, por Cantores-Videntes do seu Futuro!
Dai Homeros À Era das Máquinas, ó
Destinos científicos! Dai Miltons à época das Coisas Eléctricas, ó Deuses
interiores à Matéria!
Dai-nos Possuidores de si-próprios,
Fortes Completos, Harmónicos Subtis!
A Europa quer passar de designação
geográfica a pessoa civilizada!
O que aí está a apodrecer a Vida,
quando muito é estrume para o Futuro!
O que aí está não pode durar, porque
não é nada!
Eu, da Raça dos Navegadores, afirmo
que não pode durar!
Eu, da Raça dos Descobridores,
desprezo o que seja menos que descobrir um Novo Mundo!
Quem há na Europa que ao menos
suspeite de que lado fica o Novo Mundo agora a descobrir?
Quem sabe estar em um Sagres
qualquer?
Eu, ao menos, sou uma grande Ânsia,
do tamanho exacto do Possível!
Eu, ao menos sou da estatura da
Ambição Imperfeita, mas da Ambição para Senhores, não para escravos!
Ergo-me ante, o sol que desce, e a
sombra do meu Desprezo anoitece em vós!
Eu, ao menos, sou bastante para
indicar o Caminho!
Vou indicar o caminho!
ATENÇÃO!
Proclamo, em primeiro lugar,
A Lei de Malthus da
Sensibilidade
Os estímulos da sensibilidade
aumentam em progressão geométrica; a própria sensibilidade apenas em progressão
aritmética.
Compreende-se a importância desta
lei. A sensibilidade — tomada aqui no mais amplo dos seus sentidos possíveis —
é a fonte de toda a criação civilizada. Mas essa criação só pode dar-se
completamente quando essa sensibilidade esteja adaptada ao meio em que
funciona; na proporção da adaptação da sensibilidade ao meio está a grandeza e
a força da obra resultante.
Ora a sensibilidade, embora varie um
pouco pela influência insistente do meio actual, é, nas suas linhas gerais,
constante, e determinada no mesmo indivíduo desde a sua nascença, função do
temperamento que a hereditariedade lhe infixou. A sensibilidade, portanto,
progride por gerações.
As criações da civilização, que
constituem o «meio» da sensibilidade, são a cultura, o progresso científico, a
alteração nas condições políticas (dando à expressão um sentido completo); ora
estes ó e sobretudo o progresso cultural e científico, uma vez começado — progridem
não por obra de gerações, mas pela interacção e sobreposição da obra de
indivíduos, e, embora lentamente a princípio, breve progridem ao ponto de
tomarem proporções em que, de geração a geração, centenas de alterações se dão
nestes novos estímulos da sensibilidade, ao passo que a sensibilidade deu; ao
mesmo tempo, só um avanço, que é o de uma geração, porque o pai não transmite
ao filho senão uma pequena parte das qualidades adquiridas.
Temos, pois, que a uma certa altura
da civilização há de haver uma desadaptação da sensibilidade ao meio, que
consiste dos seus estímulos — uma falência portanto. Dá-se isso na nossa época,
cuja incapacidade de criar grandes valores deriva dessa desadaptação.
A desadaptação não foi grande no
primeiro período da nossa civilização, da Renascença ao século XVIII, em que os
estímulos da sensibilidade eram sobretudo de ordem cultural, porque esses
estímulos, por sua própria natureza, eram de progresso lento, e atingiam a
princípio apenas as camadas superiores da sociedade.
Acentuou-se a desadaptação no
segundo período, que parte da Revolução para o século XIX, e em que os
estímulos são já sobretudo políticos, onde a progressão é facilmente maior e o
alcance do estímulo muito mais vasto. Cresceu a desadaptação vertiginosamente no
período desde meados do século XIX à nossa época, em que o estímulo, sendo as
criações da ciência, produz já uma rapidez de desenvolvimento que deixa atrás
os progressos da sensibilidade, e, nas aplicações práticas da ciência, atinge
toda a sociedade. Assim se chega à enorme desproporção entre o termo presente
da progressão geométrica dos estímulos da sensibilidade e o termo
correspondente da progressão aritmética da própria sensibilidade.
Daí a desadaptação, a incapacidade
criativa da nossa época. Temos, portanto, um dilema: ou morte da civilização,
ou adaptação artificial, visto que a natural, a instinctiva faliu.
Para que a civilização não morra,
proclamo, portanto em segundo lugar,
A Necessidade da Adaptação
Artificial
O que é a adaptação artificial?
É um acto de cirurgia sociológica. É
a transformação violenta da sensibilidade de modo a tornar-se apta a acompanhar
pelo menos por algum tempo, a progressão dos seus estímulos.
A sensibilidade chegou a um estado
mórbido, porque se desadaptou. Não há que pensar em curá-la. Não há curas
sociais. Há que pensar em operá-la para que ela possa continuar a viver. Isto
é, temos que substituir a morbidez natural da desadaptação pela sanidade
artificial feita pela intervenção cirúrgica, embora envolva uma mutilação.
O que é que é preciso eliminar do
psiquismo contemporâneo?
Evidentemente que é aquilo que seja
a aquisição fixa mais recente no espírito — isto é, aquela aquisição geral do
espírito humano civilizado que seja anterior ao estabelecimento da nossa
civilização, mas recentemente anterior; e isto por três razões: (a) porque, por
ser a mais recente das fixações psíquicas, é a menos difícil de eliminar; (b)
porque, visto que cada civilização se forma por uma reacção contra a anterior,
são os princípios da anterior que são os mais antagónicos à actual e que mais
impedem a sua adaptação às condições especiais que durante esta apareçam; (c)
porque, sendo a aquisição fixa mais recente, a sua eliminação não ferirá tão
fundo a sensibilidade geral como o faria a eliminação, ou a pretensão de
eliminar, qualquer fundo depósito psíquico.
Qual é a ultima aquisição fixa do
espírito humano geral?
Deve ser composta de dogmas do
cristianismo, porque a Idade Média, vigência plena daquele sistema religioso,
precede imediatamente e duradouramente, a eclosão da nossa civilização, e os
princípios cristãos são contraditados pelos firmes ensinamentos da ciência
moderna.
A adaptação artificial será portanto
espontanente feita desde que se faça uma eliminação das aquisições fixas do
espírito humano, que derivam da sua mergência no cristianismo.
Proclamo, por isso, em terceiro
lugar,
A intervenção cirúrgica anti-cristã
Resolve-se ela, como é de ver, na
eliminação dos três preconceitos, dogmas, ou atitudes, que o cristianismo fez
que se infiltrassem na própria substância da psique humana.
Explicação concreta:
1. — Abolição do dogma da
personalidade — isto é, de que temos uma Personalidade «separada» das dos
outros. É uma ficção teológica. A personalidade de cada um de nós é composta
(como o sabe a psicologia moderna, sobretudo desde a maior atenção dada à
sociologia) do cruzamento social com as «personalidades» dos outros, da imersão
em correntes e direcções sociais e da fixação de vincos hereditários, oriundos,
em grande parte, de fenómenos de ordem colectiva. Isto é, no presente, no
futuro, e no passado, somos parte dos outros, e eles parte de nós. Para o
auto-sentimento cristão, o homem mais perfeito é o que com mais verdade possa
dizer «eu sou eu»; para a ciência, o homem mais perfeito é o que com mais
justiça possa dizer «eu sou todos os outros».
Devemos pois operar a alma, de modo
a abri-la à consciência da sua interpenetração com as almas alheias obtendo
assim uma aproximação concretizada do Homem-Completo, do Homem-Síntese da
Humanidade.
Resultados desta operacão:
(a) Em política: Abolição total do
conceito de democracia, conforme a Revolução Francesa, pelo qual dois homens
correm mais que um homem só, o que é falso, porque um homem que vale por dois é
que corre mais que um homem só! Um mais um não são mais do que um, enquanto um
e um não formam aquele Um a que se chama Dois. — Substituição, portanto, à
Democracia, da Ditadura do Completo, do Homem que seja, em si-próprio, o maior
número de Outros; que seja, portanto, A Maioria. Encontra-se assim o Grande
Sentido da Democracia, contrário em absoluto ao da actual, que, aliás, nunca
existiu.
(b) Em arte: Abolição total do
conceito de que cada indivíduo tem o direito ou o dever de exprimir o que
sente. Só tem o direito ou o dever de exprimir o que sente, em arte, o
indivíduo que sente por vários. Não confundir com «a expressão da Época», que é
buscada pelos indivíduos que nem sabem sentir por si-próprios. O que é preciso
é o artista que sinta por um certo número de Outros, todos diferentes uns dos
outros, uns do passado, outros do presente, outros do futuro. O artista cuja
arte seja uma Síntese-Soma, e não uma Síntese-Subtracção dos outros de si, como
a arte dos actuais.
(c) Em filosofia: Abolição do
conceito de verdade absoluta. Criação da Super-Filosofia. O filósofo passará a
ser o interpretador de subjectividades entrecruzadas, sendo o maior filósofo o
que maior número de filosofias espontâneas alheias concentrar. Como tudo é
subjectivo, cada opinião é verdadeira para cada homem: a maior verdade será a
soma-síntese-interior do maior número destas opiniões verdadeiras que se
contradizem umas às outras.
2. — Abolição do preconceito da
individualidade. — É outra ficção teológica — a de que a alma de cada um é una
e indivisível. A ciência ensina, ao contrário, que cada um de nós é um
agrupamento de psiquismos subsidiários, uma síntese malfeita de almas
celulares. Para o auto-sentimento cristão, o homem mais perfeito é o mais
coerente consigo próprio; para o homem de ciência, o mais perfeito é o mais incoerente
consigo próprio,
Resultados:
(a) Em política: A abolição de toda
a convicção que dure mais que um estado de espírito, o desaparecimento total de
toda a fixidez de opiniões e de modos-de-ver; desaparecimento portanto de todas
as instituições que se apoiem no facto de qualquer «opinião pública» poder
durar mais de meia-hora. A solução de um problema num dado momento histórico
será feita pela coordenação ditatorial (vide parágrafo anterior) dos impulsos
do momento dos componentes humanos desse problema, que é uma coisa puramente
subjectiva, é claro. Abolição total do passado e do futuro como elementos com
que se conte, ou em que se pense, nas soluções políticas. Quebra inteira de
todas as continuidades.
(b) Em arte: Abolição do dogma da
individualidade artística. O maior artista será o que menos se definir, e o que
escrever em mais géneros com mais contradições e dissemelhanças. Nenhum artista
deverá ter só uma personalidade. Deverá ter várias, organizando cada uma por
reunião concretizada de estados de alma semelhantes, dissipando assim a ficção
grosseira de que é uno e indivisível.
(c) Em filosofia: Abolição total da
Verdade como conceito filosófico, mesmo relativo ou subjectivo. Redução da
filosofia à arte de ter teorias interessantes sobre o «Universo». O maior
filósofo aquele artista do pensamento, ou antes da «arte abstracta» (nome
futuro da filosofia) que mais teorias coordenadas, não relacionadas entre si,
tiver sobre a «Existência».
3. — Abolição do dogma do
objectivismo pessoal. — A objectividade é uma média grosseira entre as
subjectividades parciais. Se uma sociedade for composta, por ex., de cinco
homens, a, b, c, d, e e, a «verdade» ou «objectividade» para essa sociedade
será representada por
a+b+c+d+e
5
No futuro cada indivíduo deve tender
para realizar em si esta média. Tendência, portanto de cada indivíduo, ou, pelo
menos, de cada indivíduo superior, a ser uma harmonia entre as subjectividades
alheias (das quais a própria faz parte), para assim se aproximar o mais
possível daquela Verdade-Infinito, para a qual idealmente tende a série
numérica das verdades parciais.
Resultado:
(a) Em política: O domínio apenas do
indivíduo ou dos indivíduos que sejam os mais hábeis Realizadores de Médias,
desaparecendo por completo o conceito de que a qualquer indivíduo é lícito ter
opiniões sobre política (como sobre qualquer outra coisa), pois que só pode ter
opiniões o que for Média.
(b) Em arte: Abolição do conceito de
Expressão, substituído pelo de Entre-Expressão. Só o que tiver a consciência
plena de estar exprimindo as opiniões de pessoa nenhuma (o que for Média
portanto) pode ter alcance.
(c) Em filosofia: Substituição do
conceito de Filosofia pelo de Ciência, visto a Ciência ser a Média concreta
entre as opiniões filosóficas, verificando-se ser média pelo seu «carácter
objectivo», isto é, pela sua adaptação ao «universo exterior» que é a Média das
subjectividades. Desaparecimento portanto da Filosofia em proveito da Ciência.
Resultados finais, sintéticos:
(a) Em política: Monarquia
Científica, antitradicionalista e anti-hereditária, absolutamente espontânea
pelo aparecimento sempre imprevisto do Rei-Média. Relegação do Povo ao seu
papel cientificamente natural de mero fixador dos impulsos de momento.
(b) Em arte: Substituição da
expressão de uma época por trinta ou quarenta poetas, pela sua expressão por
(por ex.), dois poetas cada um com quinze ou vinte personalidades, cada uma das
quais seja uma Média entre correntes sociais do momento.
(c) Em filosofia: Integração da
filosofia na arte e na ciência; desaparecimento, portanto, da filosofia como
metafísica-ciência. Desaparecimento de todas as formas do sentimento religioso
(desde o cristianismo ao humanitarismo revolucion´srio) por não representarem
uma Média.
Mas qual o Método, o feitio da
operação colectiva que há de organizar, nos homens do futuro, esses resultados?
Qual o Método operatório inicial?
O Método sabe-o só a geração por
quem grito por quem o cio da Europa se roça contra as paredes ! Se eu soubesse
o Método, seria eu-próprio toda essa geração!
Mas eu só vejo o Caminho; não sei
onde ele vai ter.
Em todo o caso proclamo a
necessidade da vinda da Humanidade dos Engenheiros!
Faço mais: garanto absolutamente a
vinda da Humanidade dos Engenheiros!
Proclamo, para um futuro próximo, a
criação científica dos Super-homens!
Proclamo a vinda de uma Humanidade
matemática e perfeita!
Proclamo a sua Vinda em altos
gritos!
Proclamo a sua Obra em altos gritos!
Proclamo‑A, sem mais nada, em altos
gritos!
E proclamo também: Primeiro:
O Super-homem será, não o mais
forte, mas o mais completo!
E proclamo também: Segundo:
O Super-homem será, não o mais duro,
mas o mais complexo!
E proclamo também: Terceiro:
O Super-homem será, não o mais
livre, mas o mais harmónico!
Proclamo isto bem alto e bem no
auge, na barra do Tejo, de costas para a Europa, braços erguidos, fitando o
Atlântico e saudando abstratamente o Infinito.
Álvaro
de Campos
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