domingo, 2 de fevereiro de 2020

Os «campos» da vergonha


Ziegler fala-nos dos «campos» da vergonha

No seu último livro, Jean Ziegler narra a visita ao maior centro de acolhimento de refugiados no Mar Egeu, em Lesbos, Grécia.
Um relatório avassalador.

Segunda-feira, 27 de janeiro de 2020 por  Laura Hunter


“Esperamos que os refugiados transmitam estas vivências aos seus compatriotas que ficaram, e que estes desistam de partir. É imoral, bárbaro e, além disso, totalmente ineficaz”, insurge-se Jean Ziegler.

O senhor visitou um dos cinco hot spots1 do Mar Egeu e conversou com migrantes, ativistas e o responsável do campo. As suas conclusões são assustadoras: «uma verdadeira caça aos refugiados' ocorre às portas do Europa».

Jean Ziegler: Sim. Uma estratégia muito agressiva, em grande parte pensada e financiada pela União Europeia (UE) e articulada em dois planos. O primeiro é militar. Trata-se de violentas operações militares e tecnológicas destinadas a repelir fisicamente os refugiados, no solo e no mar. Na fronteira sírio-turca, os drones que vigiam o muro que separa os dois países estão equipados com sensores de movimento que avisam em três idiomas os migrantes antes de dispararem automaticamente.

Na frente marítima, os push backs são ações repressivas de intercetação, executadas por navios da guarda costeira turca e grega, pela Frontex (agência europeia de guarda de fronteiras) e, segundo certas fontes, pela NATO. Graças à ONG Refugee Rescue, há toda uma série de vídeos que atestam certas práticas dos guardas costeiros, em particular os turcos. Vêem-se militares turcos de uniforme batendo com barras de ferro em famílias de refugiados, incluindo crianças, para os forçar a retroceder. Às vezes, os barcos da guarda costeira giram em alta velocidade em torno das embarcações, causando ondas violentas, ameaçando afundá-los. No segundo plano há uma estratégia mais indireta: hot spots…*

Diz que lhe faz lembrar os campos de concentração. Em que condições vivem os refugiados?

É necessário imaginar em Moría uma antiga caserna prevista para 6.400 pessoas, que abriga 18.000. Sem aquecimento ou eletricidade, quase sem água. O direito à alimentação não está garantido, os pratos servidos, estragados e insuficientes. O direito à dignidade e à saúde são escassos, os sanitários raríssimos e nauseabundos. As imundices envolvem o acampamento, provocando a invasões de ratos e sarna. Finalmente, os direitos da criança são violados. Privados da educação, os menores geralmente não têm acompanhamento. Distúrbios psicológicos e traumas graves são frequentes, e sem assistência. Pelo contrário, eles são sujeitos a violência pelos adultos, especialmente a violência sexual.

Às vezes, os refugiados esperam três anos nessas condições para que o seu pedido de asilo seja registrado. Quando a isso se propõem, os funcionários europeus entrevista-os durante quinze minutos, na maioria das vezes sem intérprete profissional. Quinze minutos para decidir sobre uma vida. É uma estratégia de terror e dissuasão. Espera-se que os refugiados relatem essas experiências aos seus compatriotas que ficaram para trás e que estes desistam de partir. É imoral, bárbaro e, além disso, totalmente ineficaz. A maioria dos refugiados de Moría fugiu de bombardeamentos, das cidades, de casas, de famílias e economias destruídas, de perseguições e tortura...

Eles continuarão a fugir. Proteger a sua vida e a dos seus, é humano, não é?

Como explicar esta situação?

Existem vários fatores. Primeiro, o campo de Moría pertence ao exército, o qual dirige e gere os contratos (instalações, alimentos, etc.). A UE enviou 100 milhões de euros para a Grécia em 2016, mas ainda não há nenhum relatório sobre o uso desses fundos. Portanto, há suspeitas de corrupção. O exército grego é uma instituição muito reacionária, que muitas vezes tem sido a fonte de golpes. Nos pontos quentes, eles são os únicos mestres a bordo.

Em seguida, recorde-se que em 2015 a UE negociou um «programa temporário de relocalização de emergência» prevendo a repartição de refugiados entre os 28 países. Se vários deles respeitaram esse compromisso, a Polônia, a Bulgária, a Romênia e a Hungria até hoje recusaram-se a fazê-lo, apesar da natureza vinculativa desse programa e a condenação do Tribunal Europeu.

A Eslováquia recebeu apenas algumas centenas de refugiados, apenas católicos e, a Polônia, sob o pretexto de preservar a «pureza étnica» recusou qualquer relocalização. Quando sabemos que esses países vivem dos fundos de coesão regionais europeus, surge uma primeira solução clara e legal: suspender o pagamento dessa ajuda. Este não é o caminho traçado pelo novo Presidente da Comissão Europeia (CE) que, pelo contrário, anunciou uma simples «intensificação do diálogo» com esses governos racistas de extrema-direita.

É Também de mencionar a eficiência dos lobistas de armas em Bruxelas. O mais poderoso desses grupos de pressão é a Organização Europeia de Segurança (EOS), liderada por Luigi Rebuffi, ex-gerente do fabricante de armas Thales.

A luta contra a migração é um comércio mais lucrativo que a guerra. A pedido da UE, os industriais de armamento desenvolveram tecnologia de alto desempenho. Satélites geoestacionários, vigilância por drones, radares no solo, scanners de raios-X ... Os cabeças de mula de Bruxelas investiram 16 biliões de euros em proteção de fronteiras em 2019, e esse número deve triplicar até 2027. Tudo isso às custas do contribuinte europeu.

O argumento oficial é o da luta contra o terrorismo. Mas em 2017, apenas 41 inquéritos foram enviados para os 5 hot spots, referentes a 30.000 candidatos. Portanto, encontramo-nos na presença de uma UE hipócrita, que emprega meios amplamente insuficientes para garantir os direitos humanos e realizar investigações de qualidade, mas que investe sem dificuldade em armas, arame farpado e vagões. É uma vergonha.
 
'O povo europeu deve se rebelar'

1.      ↑ Centros fechados de pré-registro de refugiados criados nas cinco ilhas do mar Egeu pela UE, enfrentando o pico da migração no verão de 2015.

1 comentário:

Olinda disse...

Uma vergonha para esta europa que gere fome e luxos lado a lado.Um flagelo social que se pretende silenciar,cuja resolução está muito longe de uma solução humanitária.Abraço