Ziegler fala-nos dos «campos» da
vergonha
No seu último livro, Jean Ziegler narra a visita ao maior centro de acolhimento de refugiados no Mar Egeu,
em Lesbos, Grécia.
Um relatório avassalador.
“Esperamos que os refugiados
transmitam estas vivências aos seus compatriotas que ficaram, e que estes
desistam de partir. É imoral, bárbaro e, além disso, totalmente ineficaz”,
insurge-se Jean Ziegler.
O senhor visitou um dos cinco hot spots1 do Mar Egeu e conversou com
migrantes, ativistas e o responsável do campo. As suas conclusões são
assustadoras: «uma verdadeira caça aos refugiados' ocorre às portas do Europa».
Jean Ziegler: Sim. Uma estratégia muito
agressiva, em grande parte pensada e financiada pela União Europeia (UE) e
articulada em dois planos. O primeiro é militar. Trata-se de violentas
operações militares e tecnológicas destinadas a repelir fisicamente os
refugiados, no solo e no mar. Na fronteira sírio-turca, os drones que vigiam o
muro que separa os dois países estão equipados com sensores de movimento que
avisam em três idiomas os migrantes antes de dispararem automaticamente.
Na frente marítima, os push backs são ações repressivas de intercetação,
executadas por navios da guarda costeira turca e grega, pela Frontex (agência europeia de guarda de fronteiras) e, segundo certas fontes,
pela NATO. Graças à ONG Refugee Rescue, há toda uma série de vídeos que
atestam certas práticas dos guardas costeiros, em particular os turcos. Vêem-se
militares turcos de uniforme batendo com barras de ferro em famílias de
refugiados, incluindo crianças, para os forçar a retroceder. Às vezes, os
barcos da guarda costeira giram em alta velocidade em torno das embarcações,
causando ondas violentas, ameaçando afundá-los. No segundo plano há uma
estratégia mais indireta: hot spots…*
Diz que lhe faz lembrar os campos de
concentração. Em que condições vivem os refugiados?
É necessário imaginar em Moría uma
antiga caserna prevista para 6.400 pessoas, que abriga 18.000. Sem aquecimento
ou eletricidade, quase sem água. O direito à alimentação não está garantido, os
pratos servidos, estragados e insuficientes. O direito à dignidade e à saúde são
escassos, os sanitários raríssimos e nauseabundos. As imundices envolvem o acampamento,
provocando a invasões de ratos e sarna. Finalmente, os direitos da criança são
violados. Privados da educação, os menores geralmente não têm acompanhamento.
Distúrbios psicológicos e traumas graves são frequentes, e sem assistência.
Pelo contrário, eles são sujeitos a violência pelos adultos, especialmente a
violência sexual.
Às vezes, os refugiados esperam três
anos nessas condições para que o seu pedido de asilo seja registrado. Quando a
isso se propõem, os funcionários europeus entrevista-os durante quinze minutos,
na maioria das vezes sem intérprete profissional. Quinze minutos para decidir
sobre uma vida. É uma estratégia de terror e dissuasão. Espera-se que os
refugiados relatem essas experiências aos seus compatriotas que ficaram para
trás e que estes desistam de partir. É imoral, bárbaro e, além disso,
totalmente ineficaz. A maioria dos refugiados de Moría fugiu de bombardeamentos,
das cidades, de casas, de famílias e economias destruídas, de perseguições e
tortura...
Eles continuarão a fugir. Proteger a
sua vida e a dos seus, é humano, não é?
Como explicar esta situação?
Existem vários fatores. Primeiro, o
campo de Moría pertence ao exército, o qual dirige e gere os contratos
(instalações, alimentos, etc.). A UE enviou 100 milhões de euros para a Grécia
em 2016, mas ainda não há nenhum relatório sobre o uso desses fundos. Portanto,
há suspeitas de corrupção. O exército grego é uma instituição muito
reacionária, que muitas vezes tem sido a fonte de golpes. Nos pontos quentes,
eles são os únicos mestres a bordo.
Em seguida, recorde-se que em 2015 a
UE negociou um «programa temporário de relocalização de emergência» prevendo a repartição
de refugiados entre os 28 países. Se vários deles respeitaram esse compromisso,
a Polônia, a Bulgária, a Romênia e a Hungria até hoje recusaram-se a fazê-lo,
apesar da natureza vinculativa desse programa e a condenação do Tribunal
Europeu.
A Eslováquia recebeu apenas algumas
centenas de refugiados, apenas católicos e, a Polônia, sob o pretexto de
preservar a «pureza étnica» recusou qualquer relocalização. Quando sabemos que
esses países vivem dos fundos de coesão regionais europeus, surge uma primeira
solução clara e legal: suspender o pagamento dessa ajuda. Este não é o caminho
traçado pelo novo Presidente da Comissão Europeia (CE) que, pelo contrário,
anunciou uma simples «intensificação do diálogo» com esses governos racistas de
extrema-direita.
É Também de mencionar a eficiência
dos lobistas de armas em Bruxelas. O mais poderoso desses grupos de pressão é a
Organização Europeia de Segurança (EOS),
liderada por Luigi Rebuffi, ex-gerente do fabricante de armas Thales.
A luta contra a migração é um
comércio mais lucrativo que a guerra. A pedido da UE, os industriais de
armamento desenvolveram tecnologia de alto desempenho. Satélites
geoestacionários, vigilância por drones, radares no solo, scanners de raios-X
... Os cabeças de mula de Bruxelas investiram 16 biliões de euros em proteção
de fronteiras em 2019, e esse número deve triplicar até 2027. Tudo isso às
custas do contribuinte europeu.
O argumento oficial é o da luta
contra o terrorismo. Mas em 2017, apenas 41 inquéritos foram enviados para os 5 hot spots, referentes a 30.000
candidatos. Portanto, encontramo-nos na presença de uma UE hipócrita, que
emprega meios amplamente insuficientes para garantir os direitos humanos e
realizar investigações de qualidade, mas que investe sem dificuldade em armas,
arame farpado e vagões. É uma vergonha.
'O povo europeu
deve se rebelar'
1.
↑ Centros fechados de pré-registro de
refugiados criados nas cinco ilhas do mar Egeu pela UE, enfrentando o pico da
migração no verão de 2015.
1 comentário:
Uma vergonha para esta europa que gere fome e luxos lado a lado.Um flagelo social que se pretende silenciar,cuja resolução está muito longe de uma solução humanitária.Abraço
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