quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Por que de racismo se fala



Crónica lida na ‘Rádio Baia’


Por que de racismo se fala

 
A ciência revelou-nos o óbvio:
Os Humanos não são divisíveis por raças. Há no entanto uns menos humanos que outros: Os racistas.

Agosto. Lisboa é uma cidade sonolenta, aconchegada na modorra que o calor transporta. As ruas estreitas são canais de frescura, veias onde circulam os que lhe mantêm a tonicidade indispensável ao ritmo estival.
Hora de almoço. Restaurantes e tascos de portas amordaçadas. No interior as cadeiras em exercícios de equilíbrio fazem o pino sobre as mesas, cenários de abandono cumprindo o calendário.

Aproveito as sombras somíticas que o sol do meio-dia nos permite. A cidade repousa, respira tranquilidade. O movimento é escasso. Sem pressas e muita curiosidade reparo na toponímia: “Conde Barão”. Sorrio. Conde e Barão... Que exagero! “Poço dos Negros”... Para quando a “Fonte dos Negros”? Pensei, matreiro, satisfeito pela ideia prenhe de malícia.

O olfato guia-me, não sei bem para onde; misturado com o podre das sarjetas chega um odor a peixe grelhado, sigo o filão, o cheiro encorpa, a curiosidade e a imaginação fundem-se em apetite, a mensagem vai-se tornando clara, começo a aperceber-me do tipo de pescado que me espera, mais uma ruela, ainda outra... E um recanto de cenário tipicamente alfacinha surge sem surpresa. No braseiro, à entrada da tasca, carapaus e sardinhas mostram-se fumegantes oferecendo-se a quem passa.

Cortadas a meio pelo sol que faz fronteira com a sombra que o afasta, quatro pequenas mesas alinhadas com o assador confundem-se com a parede.
O lugar é tranquilo, a frescura do peixe faz alarde. Aproveito a meia sombra de uma das mesas. Sento-me.

A higiénica e proletária toalha e guardanapo de papel não demoram, o simpático galheteiro não se faz esperar. E neste vai e vem do empregado, pronuncio: Carapaus.

Sóbrio e preciso, o breve monólogo ajustava-se à simplicidade do estabelecimento, além do mais não me apetecia falar, predisposto que estava a usufruir da oportunidade que a cidade me oferecia neste singular dia de Agosto.
Numa das restantes mesas três operários comiam mansamente. Junto deles uma mulher falava, falava, falava. Mansamente os homens continuavam a comer esboçando um sorriso de vez em quando.

Não longe de mim, os carapaus rechinavam na grelha deixando cair gotas de gordura como que dizendo: vais gostar!

Entretanto a mulher continuava a pregar. Entretido que estava com o meu peixe e de apetite em crescendo, desejoso de um repasto calmo, só dava pelo som agudo da sua voz que me começava a enfadar.

Falava dos pretos. Olhei-a, tinha os olhos em mim, e quando se apercebeu que nela reparei subiu o tom de voz, ganindo: pretos. E sorrio-me. Os operários enlevados chupavam as cabeças dos peixes que sublinhavam com um gole de tinto. Gente que sabe misturar sabores.

O sol teimava em não me libertar a mesa, os carapaus faziam-me negaças e não se despachavam, e a mulher, porque os três homens não lhe davam troco, virava para mim o discurso racista: os pretos, os pretos, os pretos.
Os meus olhos azuis num rosto branco, agora certamente lívido, tomaram-na por alvo.

“Também sou racista!”, Disse. A mulher devolveu-me de imediato um jubiloso sorriso de reconhecimento. E não lhe dando tempo de maior euforia, continuei firme, seco: “Não posso com os brancos!”.

Toda a expressão de alegria transfigurou-se numa metamorfose súbita, dando lugar a um semblante amorfo onde o espanto e a perplexidade se confundiam. Fixava-me e não entendia, havia algo que a ultrapassava, não estava ouvindo bem ou não enxergava de feição.

E para que não lhe restassem dúvidas, repeti de modo compassado e agressivo: “Não posso com os brancos, ouviu bem!? E sabe porquê? Porque são os únicos que me têm lixado a vida.”

A catarse resultou, acalmei. Os carapaus impecavelmente grelhados apresentaram-se-me alinhados, enfeitados com um raminho de salsa. Era carapau do branco, branquinho como eu. Não gosto do carapau negrão, prefiro o chicharro. 

Já bem-humorado ia degustando deliciado esta refeição tão nossa, e repetia para comigo: Só os brancos me têm lixado, é certo, porque todos os outros não têm tido essa oportunidade.

Quando dei uma espreitadela para o lado, os homens já bebiam o café e a mulher eclipsara-se.

O vírus do racismo, mantém-se latente em todas as mentes, intervém se nos apanha desprevenidos, e prolifera rapidamente se lho permitimos, atingindo por vezes graus preocupantes.

1 comentário:

Olinda disse...

Saborosa prosa,já que ,também de gostos se fala.Abraço