domingo, 6 de dezembro de 2020

Efeméride da Filosofia - Por Fernando Buen Abad D

Efeméride da Filosofia

(O Dia Mundial da Filosofia celebra-se na terceira quinta-feira de novembro)

 O dia da marmota” ideológica?

Por Fernando Buen Abad D

 

 “Eu tenho preferido falar de coisas impossíveis porque do possível já se sabe demasiado” Silvio Rodriguez

 

Repetidamente, Phil Connors acorda no mesmo lugar à mesma hora e no mesmo dia. É uma metáfora fílmica (1993) passada para o espanhol como o “Dia da Marmota” (Groundhog Day). Pode-se aplicar, com alguns ajustes, ao pesadelo ideológico burguês, espesso e esclerosado, no qual despertamos diariamente sem aparentes mudanças… nem escapatória. São os vestígios do “empiriocriticismo” que Lenine esmiuçou (1908) mas que se repercute por décadas para esconder as tensões entre classes sociais, para ocultar o pensamento emancipador e enjaular as melhores teses amadurecidas nas lutas recentes. Não é a Filosofia, enquanto atividade produtora de pensamento crítico, o que está em decadência são as ideias fúnebres da classe dominante.

Que bugigangas ideológicas poderão convencer-nos a aceitar, por mais tempo, o negócio macabro das indústrias bélicas? Que palavreado nos poderá convencer a tolerar o espetáculo da pobreza que se transmuta em miséria e fome? Com que saliva nos querem anestesiar enquanto nos tiram o trabalho, a casa, a saúde, a educação… e entretanto insistem em que os aplaudamos como focas amestradas? Os 2.153 multimilionários que há no mundo possuem mais riqueza que 4600 milhões (quatro biliões e seiscentos milhões) de pessoas (cerca de 60% da população mundial), segundo revela Oxfam num comunicado publicado na véspera do Fórum Económico Mundial de Davos (Suíça). Este mundo deve sair do capitalismo e de todos os seus desastres, imediatamente.

Essa riqueza sequestrada por uns quantos é suficiente para resolver 70% dos problemas materiais básicos da humanidade. O que falta pode produzir-se em muito curto prazo se nos organizarmos para resolver o mal-estar e as necessidades comuns. Não é impossível, ainda que os filósofos servis do establishment se esganicem em negá-lo. Nalguns países, que se atreveram a combater a corrupção, e que se empenham em colocar os interesses sociais acima do Capital, só com isso conseguiram reforços orçamentais suficientes para superar as crises motivadas pelo capitalismo. Essa é a filosofia correta. 

Urge um Humanismo de Novo Género - Humanismo do Concreto - sem enredos nem simplismos, sem escapismos, sem soluções fantasmagóricas, idílicas ou ilusionistas. Este humanismo que hoje nos surge deve ser, por sua vez, uma praxis ou atividade transformadora que humaniza o sujeito. Esta nova praxis, caracteriza todos os seres humanos dispostos a modificar as condições históricas concretas, ou seja, a realidade preexistente que, para ser superada, requer o implemento real-concreto do coletivo o qual também, se converte e ascende à História para se fazer nela, fazendo-se. A atividade concreta dos humanos significa, neste sentido, passar a uma situação revolucionária e permanente. O humanismo de novo género como modo superior da praxis desenvolve-se a partir dela, fazendo-se renovação e inovação constante e inesgotável nela mesma. Alguns “engenhosos talentos” tomam a História por si mesma e narram as lutas sociais reduzindo-as a obras individuais. Pareceria que as gestas emancipadoras são obra de um homem só e com isso desfiguram a luta de classes e o esforço organizativo. O individualismo asfixia-nos.

O capitalismo reina no epicentro de um mundo infestado com humilhações contra a classe trabalhadora, afogado em falácias “informativas”, recheado de vulgaridades, trapalhadas e egoísmo, saturado de petulantes e medíocres, doutorados em ninharias e criacionismos à medida, onde publicistas, igrejas, pornógrafos e pedófilos fazem o seu festim… onde se prostituí tudo e se mercantiliza a alma, o capitalismo reina à vontade e apodrece tudo o que encontra no caminho. Além disso, há tanto traidor, tanto lamechas, tanto trapaceiro, tanto oportunista, tanto reformismo… que é necessário trabalhar com rigor ou, de contrário, enterrarmo-nos  ainda mais no mesmo. Isso é intolerável.          

Há que emancipar a filosofia para que se converta em ferramenta emancipadora. Nesta fase de pandemia belicista, evidente, os filósofos devem assumir o seu trabalho com responsabilidades renovadas e métodos transformadores de ação direta. Não há tempo para diletantes. Não há lugar para burocracias bibliográficas nem para espetáculos de gurus. Há que declarar a abolição da escravidão semântica e a supressão de todo o fanatismo com manuais esotéricos. O caso mais aberrante de “Crime Organizado”, a nível mundial, chama-se Capitalismo. Nos seus mais de três séculos, organizou a destruição do planeta, a depredação da condição humana, pobreza, miséria e fomes. Humilhou os seres humanos e ameaça o futuro.

É necessário submeter a Filosofia a um processo histórico de objetivação na substância do ser social em direção a um humanismo que não é senão a história da emancipação humana no confronto capital-trabalho. Desativar a ideologia da classe dominante. Só um Humanismo concreto pode fortalecer a hostilidade sistemática contra o capitalismo, como etapa histórica real e concreta, com as suas determinações específicas, sob a dialética da emancipação. Tal humanismo construirá essencialmente a sua definição real pela sua praxis produtiva, ou seja, por uma atividade prática com a qual não só produza um mundo que se transforma e, na sua transformação, se supere dialeticamente.

Necessitamos de um Humanismo concreto, histórico e criador, não abstrato, mas que seja a expressão do conjunto das relações sociais, mesmo com os seus conflitos de raiz. Como aperfeiçoamento ético e espiritual, que resgate as melhores lutas emancipadoras contra a alienação e os atentados à liberdade humana. Esta construção do humanismo real é necessária não para reconciliação dos antagónicos, mas transformar o mundo existente, mantendo somente o melhor. Este humanismo que deve ser condição fundamental da consciência, para necessariamente possibilitar a transformação do mundo. Consciência essa que deve ter uma interpretação verdadeira e científica do mundo, sendo uma crítica consensual do existente.

 Noutros termos, é urgente um Humanismo dialético, produto da sua própria praxis e do conjunto de condições sociais desenvolvidas no nosso período histórico. Um Humanismo que transforme as suas próprias circunstâncias e elimine, concretamente, as condições objetivas e subjetivas que oprimem, exploram e humilham o ser humanos, a dignidade humana, o individual e o coletivo, a liberdade consensual, bem como a criatividade que distingue o humano. Um Humanismo como programa político que inclua, na sua tática e estratégia, a emancipação da livre criatividade para resolver necessidades pragmáticas, emocionais e estéticas.

“É preciso sonhar, mas com a condição de acreditar nos nossos sonhos. Examinar com atenção a vida real, confrontar as nossas observações com esses sonhos, e realizar escrupulosamente as nossas fantasias.” (Lenine) É urgente um Humanismo crítico do existente: do capitalismo em primeiro lugar e todas as calamidades sociais, por ele engendradas. Um Humanismo para produzir, em consenso, os bem sociais que encarnam valores fundamentais de uma vida digna que o capitalismo limita, asfixia ou esconde criminosamente O conceito de Humanismo aqui esboçado envolve não só a consciência do seu caráter desejável, possível e realizável (Sánchez Vazquez). Nele se comprometem valores pelos quais se considera necessário, digno e indispensável lutar, e não só professar sacrifícios e esforços ou dádivas filantrópicas. Necessitamos de um Humanismo que, pela superioridade dos seus valores, se oponha e combata um sistema por essência opressor e explorador, com a convicção de que o seu programa pode ser realizado sem recorrer a planificação, a organização e ação conscientes, mesmo nas condições conjunturais adversas. A humanidade necessita, além do mais, do Humanismo para não desaparecer sob a barbárie, que hoje assume formas extremas como a barbárie militar, bancária, ecológica, nuclear e mediática. Humanismo para derrotar, também, a pandemia do feminicídio.

Isto quer dizer que é indispensável enfrentar os desastres criados pelo capitalismo e as suas falácias filosóficas. É necessário trabalhar sobre as contradições específicas e dialéticas para assegurar a libertação da humanidade com um Humanismo de novo género como programa permanente de ações históricas e da vida cotidiana, das condições e determinantes socioeconómicas concretas, da prática transformadora que ainda há de ser desenvolvida. Praxis humanista que ocorre para combater as falácias que reduzem as pessoas a um simples reflexo mecânico das contradições objetivas. Um Humanismo que se imponha à análise do concreto, organizando-nos contra as determinações inumanas realmente existentes, que rompa o círculo vicioso que nos faz despertar, diariamente, vítimas do mesmo pesadelo ideológico, que se repete… e repete.

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